segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Resenha: "Em busca de sentido" (Viktor E. Frankl, 1946)

Ed. Vozes (2008), 184 páginas
 "Quem tem por que viver pode suportar quase qualquer como" (Nietzsche)

Prezado leitor, eis uma obra que deves ler com cuidado.

Se gostas de História, de saber detalhes sobre os fatos que fazem parte dos livros que estudamos na escola; ou és alguém que aprecia relatos pessoais, situações extremas, que nos levam a "vivenciar" o que, para nós, distantes no tempo, é só um fato com data e personagens para lembrar na hora de uma prova... Enfim, qual seja o teu perfil, este livro é para alguém que está preparado para ler um depoimento sensível e, ao mesmo tempo, consciente sobre os acontecimentos num campo de concentração na época da II Guerra Mundial. Acontecimentos que nos chocam e nos atemorizam por ainda notá-los nos dias de hoje.

O diferencial deste livro, para outras obras que narram vivências semelhantes, é o autor ser médico, especialista em Psiquiatria. Alguém que perdeu o pai, a mãe, o irmão e sua esposa, com quem se casara em 1941 (no ano seguinte, todos estariam em campos de concentração). Sem saber de seus entes queridos, de sua amada esposa, Viktor E. Frankl precisa conviver diariamente com a dor e a perda da sensibilidade diante das atrocidades vividas e vistas. O que poderia fazer sentido em se manter vivo? O que poderia levar um homem suportar um dia de cada vez, entregue ao destino, temendo, inclusive, qualquer tomada de decisão, dada a apatia em que se encontrava? Conheça um pouco mais sobre esta obra, que nos apresentará a linha Psicoterapêutica desenvolvida pelo autor chamada Logoterapia.


"Temo somente uma coisa: não ser digno do meu tormento" (Dostoievsky)

Esta obra foi dividida em três partes:

I - Em busca de sentido. É a parte autobiográfica. Nela o autor narrará sua chegada ao campo de concentração de Auschwitz, assim como as experiências em outros campos devido a transferências. O dia a dia, as violências sentidas (físicas e psicológicas), as relações humanas, de acordo com o papel que os "moradores" estivessem ocupando no cenário. Para deixar claro, ele divide em três fases as "reações psicológicas do prisioneiro ante a vida no campo de concentração: a fase de recepção no campo, a fase da vida em si no campo de concentração e a fase após a soltura, ou melhor, da libertação do campo" (grifo meu).

Viktor Emil Frankl
(1905 - 1997)
"Não é sem orgulho que digo não ter sido mais do que um prisioneiro 'comum', nada fui senão o simples n. 119.104. A maior parte do tempo estive trabalhando em escavações e na construção de ferrovias."


É como prisioneiro, portanto, não como médico, que o autor nos apresenta o seu relato. Mas, como é inevitável em cada um de nós, a percepção da situação vivenciada levará em conta seu olhar clínico, fazendo que determinadas lembranças só tenham ficando em razão da profissão que escolhera. Notamos isso no trecho onde confessa sua apatia ante a morte de um companheiro:


"Lá está o cadáver recém-tirado do barracão, a fitar a janela de olhos esbugalhados. Há apenas duas horas eu estava conversando com esse companheiro. Continuo tomando a sopa. Se eu não tivesse ficado espantado com a minha própria insensibilidade, de certa forma por curiosidade profissional, essa experiência nem se teria fixado em minha memória, de tão pouco sentimento que o fato todo me despertou".

Inevitável essa atitude num ambiente onde a morte está a todo instante dando o ar de sua graça. Sem contar que, o que deveria ser uma situação temporária, dada a esperança do fim da Guerra e o resgate pelas tropas aliadas, não tinha data para terminar, levando-os a uma "existência provisória". E nessa incerteza, se estariam vivos quando da libertação, atormenta mais ainda aqueles que não aprendem cedo a criar couraça diante dos sofrimentos.


"A apatia e a insensibilidade emocional, o desleixo interior e a indiferença - tudo isso são características do que designamos de segunda fase dentro das reações psicológicas do recluso no campo de concentração - muito cedo também tornam a vítima insensível aos espancamentos diários e em quase cada hora. Essa ausência de sensibilidade constitui uma couraça sumamente necessária da qual se reveste em tempo a alma dos prisioneiros".

E, na tentativa de escapar a essa realidade, vão-se criando artifícios psicológicos. Os prisioneiros voltam seus pensamentos à pessoa amada, e recriam sua imagem e "travam" diálogos numa busca de sentir o outro perto da alma, longe dali. E o diálogo espiritual leva à compreensão das palavras em Cantares 8:6:

"Põe-me como selo sobre o teu coração (...) porque o amor é forte como a morte".


A fome, o riso, a arte, o companheirismo, a esperança, o desespero, o escárnio, o suicídio, o medo, as doenças, a desistência dada a perda de sentido, a compreensão do sentimento amor, que está além da presença física, e muitos outros pontos serão abordados nessa parte da obra. Leia com cuidado, pois por mais que saibamos que isso tudo faça parte do passado, inevitavelmente somos tomados pelo sentimento humano de desejar que ninguém tivesse suportado tais situações. Mantenha a atenção no que podemos aprender, no que o autor tanto lutou para sobreviver e poder repassar para o leitor de hoje. Tamanho sofrer precisa de um sentido, e é o que o autor nos mostra:


"Ficamos conhecendo o ser humano como talvez nenhuma geração humana antes de nós. O que é, então, um ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é. É o ser que inventou as câmaras de gás; mas também aquele ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios".


II - Conceitos fundamentais da logoterapia. O autor, neste momento, explicará da melhor maneira as bases conceituais da escola que fundara, fruto de estudos e da experiência como prisioneiro do campo de concentração.


Em determinada passagem, o autor fala dessa linha de tratamento, em contraste com as do Freud (psicanálise) e de Adler (psicologia individual):


"Para a logoterapia, a busca de sentido na vida da pessoa é a principal força motivadora no ser humano. Por essa razão costumo falar de uma vontade de sentido, a contrastar com o princípio do prazer (ou, como também poderíamos chamá-lo, a vontade de prazer), no qual repousa a psicanálise freudiana, e contrastando ainda com a vontade de poder, enfatizada pela psicologia adleriana através do uso do termo 'busca de superioridade'".

Este momento do livro é para quem gosta de temas ligados à psicologia, ou pessoas curiosas, como eu, que gostam de conhecer um pouco dessa área que tem como objeto de estudo a mente humana (algo para se admirar!). Enfim, curioso ou estudante da área, vale a pena a leitura como enriquecimento de novos conceitos e da percepção do fundador dessa vertente da psicoterapia.


III - A tese do otimismo trágico. Parte final da obra baseada numa palestra proferida pelo autor no III Congresso Mundial de Logoterapia, na Universidade de Regensburg, República Federal da Alemanha, em junho de 1983.

Nesta parte, o autor abordará, de maneira sucinta, o que explanara anteriormente. Ele tem o talento de parecer estar tendo uma conversa conosco, deixando-nos familiarizados com os conceitos que vai construindo. Sentimos como se estivéssemos sentados na plateia, anotando nossas observações e nos preparando para a pergunta. Todavia, logo em seguida, a dúvida acaba sendo respondida pelo palestrante, como se ele soubesse o que vai no nossos corações e mentes.

Embora não seja do meu agrado exemplificar o índice da obra, meu desejo, estimado leitor, é que tenhas a clara ideia do que vais encontrar. É uma obra curta, todavia, passar a primeira parte dela, do relato pessoal, foi sofrido. Explico: o relato sincero e honesto das sensações e pensamentos feito por Viktor E. Frankl fez-me lamentar e chorar em algumas passagens. Não que haja um teor apelativo, pelo contrário, o autor não almeja atrair simpatia e até desmistifica determinados estereótipos que temos em decorrência do pouco que estudamos ou lemos a respeito. Mas é inevitável não lamentar que algo tão desumano tenha acontecido e ainda venha acontecendo (basta acessar um site de notícias, ao fim da leitura do livro, para encontrar relatos de tortura e morte ocorrendo no Iraque, assim como as atrocidades decorrentes do conflito entre Israel e Hamas).

As três partes, embora estejam relacionadas, não estão interligadas. Podem ser lidas independentemente. Podemos tomar esta obra como um grande ensaio, onde o autor, para fundamentar sua teoria, apresenta-nos toda a fundamentação de estudo e sua experiência de vida. Se a parte sobre o relato pessoal não te agrada, leitor, podes ler as duas partes seguintes, nas quais conhecerás um pouco sobre a terceira escola vienense de psicoterapia. Ou, talvez essa parte da psicologia não te interesse, mas tão somente o depoimento de alguém que sobreviveu, não só fisicamente, mas psicologicamente, após três anos em campos de concentração, assim como a dor de saber das mortes de seus familiares.

Sugiro a leitura pelo valor histórico que o relato nos traz; também pelas informações a respeito da Logoterapia, uma percepção de análise diferenciada. No mínimo conhecer os seus conceitos e a sua linha de terapia nos leva a outras alternativas de compreensão de nossas dores e questionamentos.

No dia 02 de setembro de 1997, Viktor E. Frankl deixou-nos, depois de ter se dedicado ao que ele definiu como propósito de sua vida, ao que lhe deu sentido para sobreviver a cada dia no campo de concentração e às dores das perdas: o de repassar seus estudos e reflexões, por amor ao ser humano.

Este post é a singela homenagem que lhe fazemos na data de hoje.

Para saber mais a respeito, depois de ler o livro (claro), acesse o site da Sociedade Brasileira de Logoterapia.

3 comentários:

  1. Alguém que tenha vivenciado uma experiência tão extrema como a dos campos de concentração nazistas e ainda tenha tido a lucidez de elaborar uma visão de mundo que pudesse socorrer as pessoas como método terapêutico decerto é portador de ideias e princípios vitais para nos desincubirmos melhor dessa tarefa de existir.

    Já conhecia Frankl de nome, de uma breve referência a seu trabalho num livro que li, mas sabê-lo, mais que sobrevivente, superador de tamanhas provações me faz ver seu trabalho como necessário, obrigatório para as mentes inquietas dos dias atuais. Outro contexto, mas, dia a dia milhões (ou bilhões) de pessoas tocam a vida sem propósitos autênticos, se escorando num sentido que é incutido de fora, por planejadores econômicos e psicopatas formadores de opinião. Nosso campo de concentração moderno é basicamente esse cercado de arame farpado eletrizado que prende nossas consciências numa estreiteza mental que atrofia nossas almas. Se Frankl vislumbrou uma saída, é uma oportunidade que não podemos deixar escapar.

    Sem dúvida vai entrar na minha lista de leituras.

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  2. Obrigada pelo comentário. De fato, conhecer a história do autor e a guinada que ele deu na vida para superar tamanha provação, faz-nos repensar na oportunidade diária que temos de tomar a decisão de buscar esse sentido que nos faz suportar restrições e seguir adiante. Quando comprei o livro, o que me atraiu foi justamente o título. Algo como: isso que estou querendo!

    Bem, às vezes tenho a mania de escolher o livro pelo diálogo mental que eu penso que o autor está tendo comigo quando leio seu título. Daí abro, leia a orelha, um pouco da introdução e um trecho aleatório da obra... assim decido se nossa conversa vai continuar. No caso de Frankl, foi simpatia de imediata.

    Pretendo estreitar mais os laços conhecendo um pouco sobre a Logoterapia. Sempre em busca desse "click" que nos faz acordar pela manhã e saber o motivo pelo qual devemos levantar.

    Abraços!

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