Ed. Vozes (2008), 184 páginas |
Prezado leitor, eis uma obra que deves ler com cuidado.
Se gostas de História, de saber detalhes sobre os fatos que fazem parte dos livros que estudamos na escola; ou és alguém que aprecia relatos pessoais, situações extremas, que nos levam a "vivenciar" o que, para nós, distantes no tempo, é só um fato com data e personagens para lembrar na hora de uma prova... Enfim, qual seja o teu perfil, este livro é para alguém que está preparado para ler um depoimento sensível e, ao mesmo tempo, consciente sobre os acontecimentos num campo de concentração na época da II Guerra Mundial. Acontecimentos que nos chocam e nos atemorizam por ainda notá-los nos dias de hoje.
O diferencial deste livro, para
outras obras que narram vivências semelhantes, é o autor ser
médico, especialista em Psiquiatria. Alguém que perdeu o pai, a
mãe, o irmão e sua esposa, com quem se casara em 1941 (no ano
seguinte, todos estariam em campos de concentração). Sem saber de
seus entes queridos, de sua amada esposa, Viktor E. Frankl precisa
conviver diariamente com a dor e a perda da sensibilidade diante das
atrocidades vividas e vistas. O que poderia fazer sentido em se
manter vivo? O que poderia levar um homem suportar um dia de cada
vez, entregue ao destino, temendo, inclusive, qualquer tomada de
decisão, dada a apatia em que se encontrava? Conheça um pouco mais
sobre esta obra, que nos apresentará a linha Psicoterapêutica
desenvolvida pelo autor chamada Logoterapia.
"Temo somente uma coisa: não
ser digno do meu tormento" (Dostoievsky)
Esta obra foi dividida em três
partes:
I - Em busca de sentido. É a
parte autobiográfica. Nela o autor narrará sua chegada ao campo de
concentração de Auschwitz, assim como as experiências em outros
campos devido a transferências. O dia a dia, as violências sentidas
(físicas e psicológicas), as relações humanas, de acordo com o
papel que os "moradores" estivessem ocupando no cenário.
Para deixar claro, ele divide em três fases as "reações
psicológicas do prisioneiro ante a vida no campo de concentração:
a fase de recepção no campo, a fase da vida em si no
campo de concentração e a fase após a soltura, ou
melhor, da libertação do campo" (grifo meu).
Viktor Emil Frankl (1905 - 1997) |
É como prisioneiro, portanto, não
como médico, que o autor nos apresenta o seu relato. Mas, como é
inevitável em cada um de nós, a percepção da situação
vivenciada levará em conta seu olhar clínico, fazendo que
determinadas lembranças só tenham ficando em razão da profissão
que escolhera. Notamos isso no trecho onde confessa sua apatia ante a
morte de um companheiro:
"Lá está o cadáver
recém-tirado do barracão, a fitar a janela de olhos esbugalhados.
Há apenas duas horas eu estava conversando com esse companheiro.
Continuo tomando a sopa. Se eu não tivesse ficado espantado com a
minha própria insensibilidade, de certa forma por curiosidade
profissional, essa experiência nem se teria fixado em minha memória,
de tão pouco sentimento que o fato todo me despertou".
Inevitável essa atitude num
ambiente onde a morte está a todo instante dando o ar de sua graça.
Sem contar que, o que deveria ser uma situação temporária, dada a
esperança do fim da Guerra e o resgate pelas tropas aliadas, não
tinha data para terminar, levando-os a uma "existência
provisória". E nessa incerteza, se estariam vivos quando da
libertação, atormenta mais ainda aqueles que não aprendem cedo a
criar couraça diante dos sofrimentos.
"A apatia e a
insensibilidade emocional, o desleixo interior e a indiferença -
tudo isso são características do que designamos de segunda fase
dentro das reações psicológicas do recluso no campo de
concentração - muito cedo também tornam a vítima insensível aos
espancamentos diários e em quase cada hora. Essa ausência de
sensibilidade constitui uma couraça sumamente necessária da qual se
reveste em tempo a alma dos prisioneiros".
E, na tentativa de escapar a essa
realidade, vão-se criando artifícios psicológicos. Os prisioneiros
voltam seus pensamentos à pessoa amada, e recriam sua imagem e
"travam" diálogos numa busca de sentir o outro perto da
alma, longe dali. E o diálogo espiritual leva à compreensão das
palavras em Cantares 8:6:
"Põe-me como selo sobre
o teu coração (...) porque o amor é forte como a morte".
A fome, o riso, a arte, o
companheirismo, a esperança, o desespero, o escárnio, o suicídio,
o medo, as doenças, a desistência dada a perda de sentido, a
compreensão do sentimento amor, que está além da presença física,
e muitos outros pontos serão abordados nessa parte da obra. Leia com
cuidado, pois por mais que saibamos que isso tudo faça parte do
passado, inevitavelmente somos tomados pelo sentimento humano de
desejar que ninguém tivesse suportado tais situações. Mantenha a
atenção no que podemos aprender, no que o autor tanto lutou para
sobreviver e poder repassar para o leitor de hoje. Tamanho sofrer
precisa de um sentido, e é o que o autor nos mostra:
"Ficamos conhecendo o ser
humano como talvez nenhuma geração humana antes de nós. O que é,
então, um ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é. É o
ser que inventou as câmaras de gás; mas também aquele ser que
entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios".
II - Conceitos fundamentais da
logoterapia. O autor, neste momento, explicará da melhor maneira
as bases conceituais da escola que fundara, fruto de estudos e da
experiência como prisioneiro do campo de concentração.
Em determinada passagem, o autor
fala dessa linha de tratamento, em contraste com as do Freud
(psicanálise) e de Adler (psicologia individual):
"Para a logoterapia, a
busca de sentido na vida da pessoa é a principal força motivadora
no ser humano. Por essa razão costumo falar de uma vontade de
sentido, a contrastar com o princípio do prazer (ou, como também
poderíamos chamá-lo, a vontade de prazer), no qual repousa a
psicanálise freudiana, e contrastando ainda com a vontade de poder,
enfatizada pela psicologia adleriana através do uso do termo 'busca
de superioridade'".
Este momento do livro é para quem
gosta de temas ligados à psicologia, ou pessoas curiosas, como eu,
que gostam de conhecer um pouco dessa área que tem como objeto de
estudo a mente humana (algo para se admirar!). Enfim, curioso ou
estudante da área, vale a pena a leitura como enriquecimento de
novos conceitos e da percepção do fundador dessa vertente da
psicoterapia.
III - A tese do otimismo trágico.
Parte final da obra baseada numa palestra proferida pelo autor no III
Congresso Mundial de Logoterapia, na Universidade de Regensburg,
República Federal da Alemanha, em junho de 1983.
Nesta parte, o autor abordará, de
maneira sucinta, o que explanara anteriormente. Ele tem o talento de
parecer estar tendo uma conversa conosco, deixando-nos familiarizados
com os conceitos que vai construindo. Sentimos como se estivéssemos
sentados na plateia, anotando nossas observações e nos preparando
para a pergunta. Todavia, logo em seguida, a dúvida acaba sendo
respondida pelo palestrante, como se ele soubesse o que vai no nossos
corações e mentes.
Embora não seja do meu agrado
exemplificar o índice da obra, meu desejo, estimado leitor, é que
tenhas a clara ideia do que vais encontrar. É uma obra curta,
todavia, passar a primeira parte dela, do relato pessoal, foi
sofrido. Explico: o relato sincero e honesto das sensações e
pensamentos feito por Viktor E. Frankl fez-me lamentar e chorar em
algumas passagens. Não que haja um teor apelativo, pelo contrário,
o autor não almeja atrair simpatia e até desmistifica determinados
estereótipos que temos em decorrência do pouco que estudamos ou
lemos a respeito. Mas é inevitável não lamentar que algo tão
desumano tenha acontecido e ainda venha acontecendo (basta acessar um
site de notícias, ao fim da leitura do livro, para encontrar relatos
de tortura e morte ocorrendo no Iraque, assim como as atrocidades
decorrentes do conflito entre Israel e Hamas).
As três partes, embora estejam
relacionadas, não estão interligadas. Podem ser lidas
independentemente. Podemos tomar esta obra como um grande ensaio,
onde o autor, para fundamentar sua teoria, apresenta-nos toda a
fundamentação de estudo e sua experiência de vida. Se a parte
sobre o relato pessoal não te agrada, leitor, podes ler as duas
partes seguintes, nas quais conhecerás um pouco sobre a terceira
escola vienense de psicoterapia. Ou, talvez essa parte da psicologia
não te interesse, mas tão somente o depoimento de alguém que
sobreviveu, não só fisicamente, mas psicologicamente, após três
anos em campos de concentração, assim como a dor de saber das
mortes de seus familiares.
Sugiro a leitura pelo valor
histórico que o relato nos traz; também pelas informações a
respeito da Logoterapia, uma percepção de análise diferenciada. No
mínimo conhecer os seus conceitos e a sua linha de terapia nos leva
a outras alternativas de compreensão de nossas dores e
questionamentos.
No dia 02 de setembro de
1997, Viktor E. Frankl deixou-nos, depois de ter se dedicado ao que
ele definiu como propósito de sua vida, ao que lhe deu sentido para
sobreviver a cada dia no campo de concentração e às dores das
perdas: o de repassar seus estudos e reflexões, por amor ao ser
humano.
Este post é a singela homenagem que
lhe fazemos na data de hoje.
Para saber mais a respeito, depois
de ler o livro (claro), acesse o site da Sociedade
Brasileira de Logoterapia.
Alguém que tenha vivenciado uma experiência tão extrema como a dos campos de concentração nazistas e ainda tenha tido a lucidez de elaborar uma visão de mundo que pudesse socorrer as pessoas como método terapêutico decerto é portador de ideias e princípios vitais para nos desincubirmos melhor dessa tarefa de existir.
ResponderExcluirJá conhecia Frankl de nome, de uma breve referência a seu trabalho num livro que li, mas sabê-lo, mais que sobrevivente, superador de tamanhas provações me faz ver seu trabalho como necessário, obrigatório para as mentes inquietas dos dias atuais. Outro contexto, mas, dia a dia milhões (ou bilhões) de pessoas tocam a vida sem propósitos autênticos, se escorando num sentido que é incutido de fora, por planejadores econômicos e psicopatas formadores de opinião. Nosso campo de concentração moderno é basicamente esse cercado de arame farpado eletrizado que prende nossas consciências numa estreiteza mental que atrofia nossas almas. Se Frankl vislumbrou uma saída, é uma oportunidade que não podemos deixar escapar.
Sem dúvida vai entrar na minha lista de leituras.
Cuidado com pôr fé absoluta nas coisas.
ExcluirObrigada pelo comentário. De fato, conhecer a história do autor e a guinada que ele deu na vida para superar tamanha provação, faz-nos repensar na oportunidade diária que temos de tomar a decisão de buscar esse sentido que nos faz suportar restrições e seguir adiante. Quando comprei o livro, o que me atraiu foi justamente o título. Algo como: isso que estou querendo!
ResponderExcluirBem, às vezes tenho a mania de escolher o livro pelo diálogo mental que eu penso que o autor está tendo comigo quando leio seu título. Daí abro, leia a orelha, um pouco da introdução e um trecho aleatório da obra... assim decido se nossa conversa vai continuar. No caso de Frankl, foi simpatia de imediata.
Pretendo estreitar mais os laços conhecendo um pouco sobre a Logoterapia. Sempre em busca desse "click" que nos faz acordar pela manhã e saber o motivo pelo qual devemos levantar.
Abraços!