segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Resenha: Comer animais (Jonathan Safran Foer, 2009)

Ed. Rocco (2011), 320 páginas
"Ninguém mais pode negar as proporções sem precedentes dessa sujeição do animal [...] Uma sujeição dessas [...] pode ser chamada de violência no sentido mais moralmente neutro do termo [...] Ninguém pode negar com seriedade, ou durante muito tempo, que os homens fazem tudo o que podem para dissimular essa crueldade ou para escondê-la de si mesmos, a fim de organizar numa escala global o esquecimento ou a compreeensão equivocada dessa violência" (Jacques Derrida, filósofo francês, grifo nosso).

Como diz o título da obra, "Comer animais" é sobre... comer animais. Óbvio? No entanto, não é uma obra gastronômica, nem a favor nem contra o uso de animais na alimentação. O foco não é a boa alimentação, mais saudável para o ser humano, nem a dieta alimentar e seus fins estéticos. É uma visão de fora do antropocentrismo que perscruta essa relação tão perturbadora entre o Homem e o Animal no âmbito do que chamamos "comer". Porque "comer" não é só "alimentar-se",  sob cuja onipresente justificativa de necessidade, questões de capricho pessoal e cultural criaram uma situação de subjugação, do bicho homem sobre as demais criaturas, sem precedentes na história da cadeia alimentar; e "animal", bem, precisa ter seu significado restaurado, precisa ser resgatado de nosso esquecimento voluntário, afinal "você sabe que galinha é galinha, não sabe?".

Como filósofo, Foer reflete sobre o atual estado de nossa posição na cadeia alimentar, recuando ao momento em que houve uma ruptura no modo de "produção" que desvirtuou tanto o "comer" como o "animal"; buscando o sentido por trás das palavras, que muitas vezes se tornam rótulos vazios, destituídas de memória, portanto de informação fática e histórica que possamos usar para tomar decisões mais conscientemente; recorrendo a estatísticas sobre os processos que trazem a carne ao prato; confrontando depoimentos de atores que desempenham papéis antagônicos em torno da moderna indústria da carne; contextualiza esse mercado ante externalidades globais, que têm efeito sobre a inteira humanidade no modo como afetam o ecossistema do planeta e a sobrevivência de nossa espécie; e, dentre outros recursos de sua profissão, que é pensar, arrazoa sobre nossos hábitos, culturas, histórias familiares, etc., que nos inserem numa linha de consumo mantida não tanto pela lógica mas pela emoção.

Jonathan Safran Foer (1977 - ...), o filósofo que quis explicar
ao filho o que é "carne".
Aliás, como diz o autor, "este livro é o registro de uma busca bastante pessoal", e é em família que a questão quanto a comer ou não comer animais (vulgo, "carne") adquiriu relevância suficiente para que Foer se pusesse em campo por três anos, colhendo dados na literatura pertinente, fazendo entrevistas com criadores e ativistas, se infiltrando clandestinamente em granjas industriais e redigindo o resultado de suas cogitações neste livro. "Eu apenas queria saber - por mim mesmo e pela minha família - o que é 'carne'".  Se o pivô dessa dúvida foi seu filho recém-nascido, ante o qual sentiu ser seu dever prover uma resposta ética quando a criança perguntasse 'por que comemos bichos?', a intenção do autor visou atingir um círculo bem mais amplo, que neste momento inclui você, caro leitor, porque "não escrevi este livro apenas para chegar a uma conclusão pessoal", pois "as criações de animais são moldadas não apenas por escolhas alimentares, mas por escolhas políticas", e é como animal político que o homem decide o que fazer ou não com os outros animais.

Seguem algumas considerações apresentadas no livro...


1. "Ninguém jamais teve brinquedo de pelúcia em forma de pedra"


"Barreira entre espécies" recebe uma definição bastante
instigante no capítulo "O significado das palavras"
Um momento crucial na vida do autor, que ele chamou de "o primeiro dia do resto da minha vida", foi quando adotou um cachorrinho. Foer confessa que sempre teve fobia de cães mas, por um magnetismo especial, lá estava ele a levar um filhote para casa. Segundo estatísticas, 63% das casas nos EUA têm animais de estimação, o que gera uma movimentação de US$ 34 bilhões ao ano. Esse contato mais íntimo "criou a base psicológica da visão de que ao menos alguns animais eram dignos de consideração moral". O autor chega a supor que "talvez pela privação de outros contatos com animais". O que, no entanto, não é coerente é que quase metade de cães e gatos adotados são submetidos a eutanásia e serão "convertidos" em "alimento do nosso alimento", quer dizer, comporão a ração dada a animais de granjas industriais. Isso é chamado "barreira entre espécies". Por alguma razão (ou falta dela), alguns animais são queridos e outros destinados ao abate, e as espécies escolhidas variam de cultura a cultura. Por exemplo, "aqueles que comem chimpanzé olham para a dieta ocidental como tristemente carente de um grande prazer", e há países onde a carne de cachorro é apreciada - inclusive, para mexer com nossa sensibilidade, Foer nos dá uma receita de "cachorro ensopado, estilo casamento"! Se a só menção desse fato causa a nós ocidentais verdadeira repulsa, quanto mais ao saber que "é largamente aceito que a adrenalina faz com que a carne de cachorro tenha um sabor melhor - daí os métodos tradicionais de abate:"... e o resto está lá no texto. O que vemos de revoltante lá no Oriente, pode-se ver nos EUA (representando o Ocidente), "uma nação que gasta em alimentação o menor percentual de sua renda do que qualquer outra civilização na história da humanidade -, mas que, em nome do baixo preço, trata os animais com uma crueldade tão extrema, que seria ilegal se infligida a um cachorro".

2. "Uma boa intenção [...] não vai alimentar o mundo"


Um dos mais fortes argumentos pelo consumo animal é o de que os produtores estão "apenas fazendo o melhor possível para alimentar o mundo", de que os ativistas não sabem "a tarefa colossal que é alimentar um mundo de bilhões de onívoros, exigindo carne com suas batatas". Exigindo por quê? Um dado interessante é o de que "os americanos comem 150 vezes mais aves do que comiam há apenas oitenta anos". O que teria acontecido com a natureza humana para depender cada vez mais de produtos animais? Uma mutação genética? Uma evolução da espécie, se tornando cada vez mais carnívora? Talvez a resposta esteja nestas informações: "Desde o desenvolvimento da própria ciência, os produtores de carne têm garantido sua presença entre aqueles que influenciam como as informações nutricionais serão apresentadas a gente como você e eu"; "nosso país recebe suas informações nutricionais, endossadas em nível federal, de uma agência [o USDA, Departamento de Agricultura dos EUA] que deve apoiar a indústria de alimentos, o que hoje em dia significa apoiar as criações industriais" e "como as companhias de cigarro, essas empresas cooptam profissionais de alimentação e nutrição, apoiando organizações profissionais e pesquisas e expandindo suas vendas com propaganda direcionada à criança". Por exemplo, o "Programa Nacional de Almoço na Escola" destina mais de US$ 500 milhões dos impostos "[a]o setor de laticínios, carne bovina, ovos e carne de aves que forneçam produtos animais às crianças, apesar do fato de as informações nutricionais sugerirem que devíamos reduzir esses alimentos em nossa dieta", e apenas US$ 161 milhões "vão para a compra de frutas, verduras e legumes, que até o USDA admite que deveríamos comer mais". De fato, "vegetarianos e veganos tendem a ter um melhor consumo de proteína do que os onívoros" e "as taxas mais altas de osteoporose são observadas nos países onde mais se consomem laticínios". Não, “a criação industrial não diz respeito a alimentar pessoas”, "a criação industrial não surgiu nem avançou a partir de uma necessidade de produzir mais comida - de 'alimentar os famintos' -, mas de produzi-la de modo que seja lucrativo às companhias do agronegócio". Temos sim um colossal paradoxo de "uma indústria de alimentos cuja preocupação principal não é alimentar as pessoas".

3. "Não havia ocorrido ainda aos fazendeiros tratar os animais vivos como se [já] estivessem mortos"


Foer chegou a visitar clandestinamente granjas industriais. Dentro de uma, expressou surpresa ante uma constatação: "Todo mundo tem uma imagem mental de uma fazenda [mas] duvido que haja alguém na Terra [...] cuja mente fosse conjurar a visão que tenho diante de mim agora". O fato é que “a grande maioria [das pessoas] ficaria estarrecida com o que acontece ali dentro”. Esse é mais um problema com "as palavras [que] são usadas para desorientar e camuflar com a mesma freqüência com que são usadas para comunicar". É que os criadores "não são mais exatamente homens do campo - são corporações", pela óptica das quais tudo o que podemos fazer é "ver a eficiência e a supremacia da máquina e então entender as aves como extensões ou engrenagens dessa máquina - não seres, mas partes". "Quando um porco entra no seu campo de visão, ele ou ela já é uma coisa". O conflito entre palavra e significado, entre a visão bucólica da fazenda e a companhia industrial que processa animais é o que justifica a necessidade de clandestinidade para ver (e para crer) como funcionam as granjas modernas. "O sucesso da criação em escala industrial depende da visão nostálgica dos consumidores sobre a produção de alimentos", os industriais da carne "sabem que o modelo de seu negócio depende de os consumidores não poderem ver (ou ouvir falar sobre) o que eles fazem" e, com isso, “as fazendas e granjas industriais foram bem-sucedidas em separar as pessoas de sua comida, eliminando os fazendeiros e administrando a agricultura a partir das ordens das corporações”.

Com o foco nos lucros, houve uma revolução na maneira de lidar com os animais para a produção de carne. Interessante que foi "a eficiência dessas linhas [que] inspirou Henry Ford", visto que "montar um carro é só desmembrar uma vaca ao contrário". Meras peças, "os animais se tornam quase acidentais". Até mesmo estocáveis ("superpovoar é lucrativo"). Com vistas à redução de custos, "esses criadores calculam o quão perto da morte podem manter os animais sem matá-los[: é]  o modelo do negócio [...] o quão rapidamente eles podem ser levados a crescer, o quão apinhadas podem ficar suas gaiolas, quão pouco podem comer, quão doentes podem ficar sem morrer". E, na verdade, "essa foi a verdadeira revolução - foi que você não precisa de animais saudáveis para ganhar dinheiro[,] animais doentes dão mais lucro [...] [eles] pagaram o preço do nosso desejo de ter tudo à disposição o tempo todo por um valor bastante baixo". Outro exemplo dessa "Realpolitik": o conceito de "animal caído". Cerca de 200 mil vacas por ano, "duas vacas para cada palavra deste livro", caem e, por motivos diversos, têm dificuldade de se levantar. O que fazer com esses animais? Pegam a calculadora e avaliam "se seria mais lucrativo deixar o animal se acabar". Solução: "Jogá-los, vivos, em caçambas de lixo", pois cuidar "custa dinheiro".

Não é só no pragmatismo insensível que a indústria da carne se assemelha às demais. Há muito dinheiro em jogo. É "uma indústria de mais de 140 bilhões de dólares anuais". E isso significa poder: "Encontramos influência significativa da indústria animal em cada esquina: nas pesquisas acadêmicas, no desenvolvimento de políticas para o campo, na regulamentação governamental e na imposição de seu cumprimento" e "a imensa influência do setor sobre o governo significa que o regulamento com freqüência é invalidado ou não entra em vigor". Por exemplo, "as leis de bem-estar do estado não podem ser impostas para 'proibir ou interferir em métodos estabelecidos de procriação animal, incluindo a criação, o manejo, a alimentação, o alojamento e o transporte de gado ou animais de granja'". E quando podem, abundam as violações. Num determinado caso, "uma violação pode ter sido acidente[;] até mesmo dez violações[;] mas sete mil violações constituem um plano", e mesmo que tenha sido multada em US$ 12,6 milhões (a maior multa civil por poluição na história dos EUA), a companha infratora ganha esse mesmo valor bruto a cada 10 horas! O que confere tanto poder [dinheiro] a essas companhias e valida seus métodos de "economia": "comer animais de qualquer tipo apoia necessariamente [...] a criação industrial, ao aumentar a demanda pela carne", "enquanto a comida continuar ficando cada vez mais barata em relação a todas as outras coisas, o criador não tem outra opção além de produzir comida a um custo de produção mais baixo".

Mas “o segredo que permitiu a existência das fazendas e granjas industriais está ruindo”. Vejamos alguns outros trechos da obra em que Foer nos apresenta essa situação...

4. "Se há alguma coisa errada com o sistema, há alguma coisa terrivelmente errada com o nosso mundo"


Ainda que exercitemos nossa indulgência com a "aceitação [...] da falibilidade humana", não podemos ignorar os dados apresentados por Foer sobre o alcance dos erros da indústria carne, assustadores mesmo que consultados "[n]as mais conservadoras estatísticas". O autor acredita que "onde há informações [...] há a questão de o que podemos de fato fazer com elas", e que não sejam "apenas mais informações para cada um digerir como bem entender"... 

4.1. O efeito ambiental. "[A indústria da carne] ocupa perto de um terço de todo o território do planeta, molda os ecossistemas dos oceanos e pode determinar o futuro do clima da Terra". Se a definição de "ambientalismo" é "preocupação com a preservação [...] de recursos naturais [...] que sustentam a vida humana", então "alguém que come regularmente produtos animais de fazendas e granjas industriais não pode se autointitular ambientalista sem separar a palavra de seu significado". Por exemplo, a pecuária contribui mais para mudança climática do que o transporte: "18% das emissões de gás estufa, cerca de 40% a mais do que todo o setor de transportes", "37% do metano antropogênico, que oferece 23 vezes o potencial de aquecimento global do [dióxido de carbono]" e "65% de óxido nitroso antropogênico, que oferece assombrosas 296 vezes o [potencial de aquecimento global] do [monóxido de carbono]". "Os onívoros contribuem com um volume de gases estufa sete vezes maior do que os veganos". Outra fonte de poluição são os dejetos despejados em rios. "Uma típica granja industrial de suínos produz 3,2 milhões de quilos de excremento por ano[;] unidades de criação podem gerar mais resíduos do que as populações de algumas cidades americanas[;] [somando tudo,] produzem 130 vezes mais excrementos do que a população humana - mais ou menos quarenta mil quilos de merda por segundo". "Isso significa que [...] -  uma única pessoa jurídica - produz pelo menos tanto lixo fecal quanto toda a população humana dos estados da Califórnia e do Texas juntos". O problema é que "nem toda merda é merda [...]: porcos natimortos, placenta, leitões mortos, vômito, sangue, urina, seringas de antibióticos, frascos quebrados de inseticida, pelos, pus, até mesmo partes de corpos", são despejados em "lagoas tóxicas" quem nem sempre têm contenção adquada. Excrementos de galinha, porcos e gado poluem 56 mil km de rios em 22 estados americanos (estimativa conservadora da EPA). "[A companhia] responde com um 'ops' e, aceitando seu pedido de desculpas, continuamos comendo nossos animais vindo de criações industriais". Outra mazela ambiental são as mortandades que levam a extinções. "Cerca de 4,5 milhões de animais marinhos são mortos acidentalmente na pesca com espinhéis a cada ano". No caso do uso de "rede de arrasto[,] [que] é o equivalente marinho da derrubada de uma floresta tropical", resulta em que os navios pesqueiros "jogam em média de 80 a 90% [chega a 98%] dos animais marinhos que capturam de volta ao oceano, mortos". Daí prevê-se "o colapso de todas as espécies alvo de pesca em menos de cinqüenta anos - e esforços intensos estão sendo feitos para capturar, matar e comer ainda mais animais marinhos". Exemplos disso são 20 de 35 espécies de cavalos-marinhos estão "ameaçadas de extinção porque são mortas 'sem querer' na produção de frutos do mar", e "estão entre as mais de cem [145] espécies mortas como 'captura acidental' na indústria moderna de atum". Outro caso de "captura acidental", "a operação de pesca de camarão com rede de arrastão joga por cima da amurada de 80% a 90% dos animais marinhos que captura, mortos ou morrendo, como acidental". "O camarão constitui apenas 2% dos frutos do mar do mundo, por peso, mas sua pesca, com redes de arrastão, responde por 33% da captura acidental do mundo"; "para cada quilo deste camarão, 26 quilos de outros animais marinhos foram mortos e jogados de volta ao oceano". E "o fato de a pesca em si não diminuir de volume dá a falsa impressão de sustentabilidade". Extinções localizadas também podem ocorrer com as aves: "duas companhias são donas de três quartos da genética de todas as galinhas de corte no planeta", "a biodiversidade foi substituída pela uniformidade genética". O mesmo com o peru.

É claro que Homer deu uma ajudinha para completar o silo de "caca de porco" (filme Os Simpsons, 2007) mas a comicidade da cena descortina a trágica incoerência humana de, a pretexto de alimentar-se, criar animais frankensteinianos, torturá-los e matá-los cruelmente, poluir água, terra e ar, e atentar contra a lógica da ciência econômica, com uma balança eficiência-externalidade que pende para a autodestrutividade.

Você realmente sabe com o que está
alimentando o corpo ("carne") e
a alma (ética) de seu filho?
Se não, ele é uma cobaia.
4.2. O efeito sobre a saúde humana. Há uma "influência deturpadora da indústria da carne sobre informações que recebemos do governo e dos profissionais de medicina acerca da nutrição". Já comentamos a esse respeito mais acima. As informações que não nos são passadas sobre quão nutritiva é a carne, tão súbita e crescentemente indispensável à espécie humana, são reveladas pelo autor no caso dos "cinquenta bilhões de aves adoentadas e drogadas [e] quinhentos milhões de porcos com sistema imunológico comprometido" que nos são fornecidos como alimento. Cerca de "83% de toda a carne de frango [...] estão infectados por campilobacter ou salmonela no momento da compra", "praticamente todas as galinhas (mais de 95%) acabam infectadas pela E. coli" e "entre 39 e 75% delas ainda continuarão infectadas na comercialização". De "10-30% de seu peso [é] em caldo, condimento ou água", i.é., líquido oriundo de um tanque de resfriamento e que é chamado de "sopa fecal". Essa "água suja" é transformada em peso adicional na comercialização e pode passar de 11% do peso da carne, valor estipulado pela própria indústria de frangos, com aval do governo, e que faz os consumidores literalmente doarem milhões por esse incremento. "A cada semana, milhões de galinhas com pus amarelo escorrendo, manchadas por fezes verdes, contaminadas por bactérias nocivas ou prejudicadas por infecções pulmonares e cardíacas, tumores cancerígenos ou problemas de pele são enviadas aos consumidores". Aliás, o governo reclassificou as fezes como "defeitos cosméticos". Além disso, a OMS [Organização Mundial da Saúde] relacionou "o uso não terapêutico de antibióticos em criações industriais com o aumento da resistência antimicrobiana". Um raro criador tradicional (não-industrial) disse: "E quanto às pessoas que comem essas aves? Outro dia, um dos pediatras locais me dizia ter visto todo tipo de doenças que não costumava ver. Não só diabetes juvenil, mas doenças inflamatórias e autoimunes que vários médicos não sabem nem como chamar. As garotas estão chegando à puberdade mais cedo, as crianças estão alérgicas a praticamente tudo e a asma está fora de controle. Todo mundo sabe que é a nossa comida. Estamos bagunçando com os genes desses animais, dando-lhes hormônios e todo tipo de drogas sobre as quais, na verdade, não sabemos o bastante. E depois as comemos. As crianças de hoje são a primeira geração a crescer alimentada com essas coisas, e estamos fazendo experiências científicas com elas". Há fundamento? Nos "76 milhões de casos de doenças transmitidas por alimentos [...] a cada ano [...] [quem ficou doente] não pegou uma doença [...] é mais provável que tenha comido uma doença". Se o homem é o que come, "essa carne torturada está se tornando a nossa própria carne". Mas "nossa escolha é simples: galinha barata ou saúde". (O problema das pandemias, da próxima "gripe espanhola", deixo a cargo do leitor.)

4.3. O efeito econômico. É interessante como a Economia é avocada pelos criadores industriais para justificar suas práticas mas outros (e atualmente mais importantes) aspectos dessa ciência são solenemente ignorados. Se extinções e pandemias parecem relações causais distantes, a ideia clássica de externalidade negativa pode ser claramente compreendida nesta passagem: "Moradores próximos a criações industriais raramente são saudáveis, e são tratados pela indústria como dispensáveis. A neblina fecal que são obrigados a respirar em geral não mata seres humanos, mas gargantas inflamadas, dores de cabeça, tosse, coriza, diarreia e até mesmo doenças psicológicas, incluindo níveis anormais de tensão, depressão, raiva e cansaço, são comuns". "Responsabilidade social" parece não fazer parte do jargão administrativo dessas corporações. Tampouco "eficiência". "A criação intensiva é o último sistema que você desenvolveria se sua preocupação fosse alimentar pessoas de modo sustentável e a longo termo", e exemplo disse é a tal "conversão alimentar": "para cada caloria de carne animal produzida, é necessário fornecer a esse animal de 20 a 26 calorias". "[Se é] 'crime contra a humanidade' desviar cem milhões de toneladas de grãos e cereais para produzir etanol enquanto quase um bilhão de pessoas passam fome [então] que tipo de crime é a agricultura animal, [que  desvia] 756 milhões de toneladas [...] mais que o suficiente para alimentar 1,4 bilhão [de pessoas, sem incluir] o fato de que 98% [da soja], 225 milhões de toneladas, também são dados a animais de criações industriais. Você está apoiando uma gigantesca ineficiência e empurrando para cima o preço da comida para as pessoas mais pobres do mundo." Outra ineficiência que passa despercebida é a marcação do gado. Porém, longe de servir ao pretenso motivo da segurança do patrimônio, “marcar a ferro é cultural […] e os fazendeiros não querem abrir mão delas [das marcas]”, é “uma concessão não à necessidade ou à praticidade […] mas um hábito de violência irracional e desnecessário, uma tradição”. Outro elemento dessa economia, o recurso humano, também sente os efeitos da "indústria da carne que trata tanto o animal quanto o 'capital humano' como máquinas”. “Seres humanos não têm como ser humanos (e muito menos humanitários) nas condições de uma fazenda ou granja industrial ou num matadouro. É a mais perfeita alienação do local de trabalho no mundo, no momento”. A rotatividade chega a passar dos 100% ao ano nos abatedouros e "produtores rurais americanos correm quatro vezes mais risco de cometer suicídio". Alternativa para provisão do mercado? Não, "[as granjas tradicionais] não têm como produzi-los [os animais] sem reinventar uma agora destruída infraestrutura rural", destruição essa que foi "quase completa nos [EUA]". E parece que também a "mão invisível" de Adam Smith foi para o abate pelo cabresto. Se as forças de mercado promoveriam uma "seleção natural" das melhores técnicas produtivas, aqui, "se não repassasse [seus custos (externalidade)] ao público, [uma granja industrial] não teria condições de produzir a carne barata que produz sem ir à falência". "O que não aparece na caixa registradora dos supermercados é pago durante anos e por todo [o] mundo". Essas companhias "contam conosco não só para apoiá-las, mas também [para] pagar pelos seus erros". "Nossa atual forma de comer - [o dinheiro vertido diariamente para as corporações] - recompensa as piores práticas concebíveis". Enfim, além da desvirtuação do fim (que não é a produção de alimento), há também a do meio: "No mundo das criações industriais, as expectativas são viradas de cabeça pra baixo. Os veterinários não trabalham buscando a melhor saúde possível, mas o maior lucro possível. As drogas não são usadas para curar doenças, mas como substitutos para sistemas imunológicos destruídos. As criações não visam produzir animais saudáveis".

5. "O animal olha para nós, e estamos despidos diante dele" (Jacques Derrida)


O autor admite "[se] arriscar a perder credibilidade" pois "parti do pressuposto, quando comecei minha pesquisa, de que sabia o que iria encontrar". E encontrou mais do que o leitor já sabe que há para encontrar. Quando certo criador afirma que "está claro que é natural para os animais comerem uns aos outros", entra em jogo o que define o "antropomorfismo" (um dos 38 "verbetes" do criativo terceiro capítulo): "não projetamos simplesmente a experiência humana nos animais; nós somos (e não somos) animais". "Se queremos repudiar uma parte de nossa natureza, a chamamos de 'natureza animal'", mas considerarmo-nos carnívoros, de certa forma, busca validar a dieta invocando exatamente... nossa animalidade. Mais que isso, invocamos do animal uma sombra (a da crueldade) que nós mesmos lançamos sobre ele, porque não é só a carne que comemos, mas o modo como a obtemos que devemos ver como natural. Se comer animais é natural, saber como é obtido e morto também deve sê-lo, porque o ato (comer) inclui todo o processo, o "natural" inclui a caça e, portanto, a relação direta com a presa. Sem essa relação, poderia ser essa consecução, na prática, natural? (Leia uma das 271 notas no fim do livro sobre como é preparada a lagosta e confira quão natural é comê-la). De fato, "as justificativas para comer animais e para não os comer são, com freqüência, idênticas: nós não somos eles". Então, de olho na presa, "perguntar 'O que é um animal?' [...] é tocar de forma inevitável no modo como compreendemos o que significa ser nós e não eles. É perguntar 'O que é um humano?'".

Talvez, do ponto de vista do criador industrial, um humano seja um deus. Sente-se com "c" maiúsculo, um Criador. Vemos isso na forma como os animais para abate são obtidos com a  concentração do "incrível poder do moderno conhecimento genético para gerar animais que sofrem mais". "Os produtores [criam] animais que sofrem de modo mais agudo porque seus corpos exibem características que a indústria e o consumidor exigem". "Estamos gerando criaturas incapazes de sobreviver em qualquer outro local que não seja o mais artificial dos ambientes". Um exemplo não-comestível (pelo menos não no Ocidente): raças de cães, sendo que "uma raça, ao contrário de uma espécie, não é um fenômeno natural". Pastores alemães sofrem de displasia do quadril, uma doença genética dolorosa, porque "seu design os destina à dor". Se fazemos isso com animais que não comemos, o que fazemos com nossa comida - destinada a ser triturada nos dentes e engolida? Chega a ser um eufemismo quando um criador diz que "esse negócio nem sempre é bonito". Todo-poderoso, o Criador Industrial tem os animais em sujeição - não a sujeição Bíblica, de Gênesis, mas a denunciada por Derrida, citado acima. Se questionados sobre isso, "[a] resposta automática [é que] ninguém entra para este ramo de negócios porque odeia os animais[;] [mas] por que, afinal de contas, é necessário ser dito que eles não odeiam os animais?”. Porque há “atos deliberados de crueldade acontecendo com regularidade em 32% das instalações”, isso constatado em auditorias anunciadas! Cerca de “26% dos abatedouros revelaram maus-tratos tão graves que deveriam ter sido reprovados”, isso admitido pela própria administração de um deles! "A criação industrial [...] priva cada animal do menor vestígio de felicidade".

Como diz o autor, “eu poderia ter escrito vários livros – uma enciclopédia de crueldades – com testemunhos de funcionários” (e cita o livro de Gail Eisnitz, "Slaughterhouse" [matadouro], que chega perto disso, com o sugestivo subtítulo "A chocante história da cobiça, negligência e do tratamento desumano no interior da indústria da carne nos EUA"), mas este não é o propósito da obra. Todavia, Foer menciona de forma esparsa alguns fatos que mostram que "é muito mais fácil ser cruel do que se pensa". Vejamos o que acontece com alguns animais.

5.1. Gado vacum. Na escala de sofrimento de animais de criadouro, o bovino parece um afortunado. Mas mesmo sua sorte não parece ser a que o bicho deseja pra si mesmo. Contando um caso de fuga de uma vaca, de dentro dum abatedouro, Foer diz que "no mínimo, ela parecia saber do que estava fugindo". Se você não sabe, leia as páginas 229-236 do livro.

Num criadouro, cerca de 120 leitões nanicos por ano sofrem a "batida",
i.é., são segurados pelas pernas e têm a cabeça batida no chão de concreto:
 "houve ocasiões em que entrei naquela sala e eles estavam correndo 
com um olho pendurado do lado do rosto, sangrando feito loucos,
ou com o queixo quebrado [...] Eles chamam isso de 'eutanásia'".
5.2. Porco. Na seqüência vem o suíno. Certa granja industrial, sozinha, "mata por ano mais porcos do que o conjunto da população humana [de 18 cidades, incluindo Nova Iorque, Chicago, etc.] - cerca de 31 milhões de animais". Na natureza, "os porcos precisam da companhia de outros que eles conheçam para funcionar normalmente". Em "sociedade", o confinamento e o deslocamento do animal é tal que alguns chegam a surtar. "Os animais estressados produzem mais ácido, o que na verdade destrói os músculos do animal", e a solução, longe de volver ao natural, "às velhas e simpáticas tentativas de imitar processos naturais" , não consiste em "deixar porcos serem porcos", mas em brincar de deus novamente com sua genética. O resultado? "Os porcos continuam tão estressados que o mero gesto de dirigir um trator perto demais do local onde estavam confinados os fazia caírem mortos". Da sociedade para a família, "a moderna fêmea suína industrial dá à luz, alimenta e cria em média nove leitões - número que vem sendo aumentado anualmente pelos criadores". "Uma injeção hormonal faz com que a porca logo volte a ovular", confinada numa "cela de gestação" ("é preciso dar uma surra nas porcas grávidas para fazê-as entrar nas celas"), "vai receber alimentação restrita e, com freqüência, passar fome [...] se deitar sobre seu excremento [e] nenhum animal tem permissão de se mexer". "A falta de movimento e a nutrição insuficiente deixa[m] de 10 a 40% dos porcos estruturalmente doentes [dos ossos e articulações] [...] 7% [e chega a 15%] das porcas reprodutoras [têm] mortes prematuras devido ao estresse do confinamento e à reprodução intensiva [...] muitos porcos enlouquecem [...] Outros exibem comportamento triste, [chamada na indústria de] 'impotência assimilada'". O destino dos filhotes segue a sina da mãe. Rabo e dentes de leitões são cortados "sem nenhum tipo de anestésico"; "os machos têm os testículos arrancados [90% dos leitões], mais uma vem sem anestésico [porque] os consumidores nos [EUA] preferem o gosto de animais castrados". Naturalmente, leitões são desmamados com 15 semanas; nas granjas, em 15 dias, às vezes 12. Porcos desmamados são "colocados à força em grades metálicas grossas, os 'berçários', [que] são empilhadas umas sobre as outras, e fezes e urina caem das gaiolas mais altas sobre os anmais lá embaixo"

5.3. A galinha ("frango", para não pensarmos nisso). Segundo estatísticas, "99% de todos os animais terrestres abatidos são aves". O Criador Industrial mais uma vez brinca de deus. Suplementos alimentares, vitaminas A e D, incubadoras artificiais, milho híbrido, "debicagem", "luzes e ventiladores automáticos fizeram com que densidades ainda maiores fossem possíveis". Faça-se a luz! "Então as galinhas pensam que é primavera", e "isso é um código para dizer às aves 'Bem, é melhor começar a pôr ovos[;] a primavera está chegando'". Daí as galinhas põem mais de 300 ovos por ano, de 2 a 3 vezes mais que na natureza. "As galinhas de outrora tinham uma expectativa de vida de quinze a vinte anos, mas o moderno frango de corte em geral é abatido em torno de seis semanas". Do ponto de vista do mercado, o aumento da demanda (150 vezes maior que há 80 anos, lembra?) exigiu o abate na infância mas o volume de carne de adultas. E que adultas! Novamente, a genética: "Sua taxa diária de crescimento aumentou cerca de 400%". O efeito é que "as galinhas [...] são quase todas abatidas com 39 dias[;] são filhotes [...] não podem viver mais do que isso porque sua genética está ferrada [...] uma ave que você simplesmente não pode deixar passar da adolescência". Além disso: "Os músculos e tecidos de gordura dos frangos de corte projetados recentemente crescem bem mais do que seus ossos, levando a deformidades e doenças [...] entre 1 e 4% dessas aves morrerão retorcendo-se em convulsões devido à síndrome da morte súbita [...] o excesso de fluidos [que] enche a cavidade corporal, a ascite, mata ainda mais. Três a cada quatro aves terão algum grau de defeito ao caminhar, e o senso comum sugere que sentem dor crônica. Uma a cada quatro terá tantos problemas ao caminhar que não há dúvidas de que sentirá dor". Devido a essa "genética idiota", "as aves já não podiam ser 'saudáveis' ou até mesmo sobreviver sem [drogas]", e "[as aves] que comemos são animais de fim de linha - pelo modo como foram projetados, não têm condições de viver tempo suficiente para se reproduzir[em]". Mais ainda: 180 milhões de galinhas por ano são abatidas de modo inadequado, mas, nos tranqüiliza um criador, "o processo todo termina em questão de minutos"! No caso das galinhas poedeiras, fica para o leitor buscar no livro (pg. 68) a resposta à pergunta: "o que acontece com todos os filhotes machos de poedeiras?". Em resumo, "todas as aves vêm de bandos genéticos frankensteinianos; todas são confinadas; nenhuma desfruta da brisa ou do calor do sol; nenhuma tem condições de dar vazão a todos os traços de comportamento característicos de sua espécie (em geral, [...] a nenhum deles), [...] as doenças são sempre em enorme quantidade; o sofrimento é sempre a regra; [...] a morte é invariavelmente cruel". E "a cada ano, cinqüenta bilhões de aves são obrigadas a viver e morrer desse jeito"

"O peso médio de frangos de corte aumentou 65%, enquanto o tempo até chegarem ao mercado caiu 60% e suas necessidades alimentares [caíram] aproximadamente 57%. Para ter uma ideia do radicalismo dessa mudança, imagine crianças humanas crescendo até atingirem 140 quilos em dez anos, comendo apenas barras de cereal e vitaminas". Nos quadrinhos, Banner sofre mutação genética com raios gama e se torna um gigante de força desmedida sob impulso da raiva. Na indústria da carne, animais geneticamente alterados se tornam "hulks" ("carcaças") enfraquecidos por doenças e dores crônicas. 


5.4. Peixes. Segundo o autor, "[os peixes estão] entre os [animais] menos considerados pelos humanos", o que dá pra perceber nos vídeos de pesca, "homens se comportando como se acabassem de salvar a vida de alguém". Será por isso que "'nossa interação com os recursos da pesca (também conhecidos como peixes) passaram a lembrar .. as guerras de extermínio'"? "Tecnologias de guerra têm sido sistematicamente aplicadas à pesca", "radares, sonares [...], sistemas de navegação desenvolvidos para a marinha de guerra e [...] GPS baseados em satélite", permitem "pegar cardumes inteiros de uma só vez". E curiosamente, a guerra ("pesca") recrudeceu com "a criação intensiva[,] [que] incentivou a exploração internacional e a demanda pelo peixe". Alguma vez já pensou em "como é a experiência animal"? Tente imaginar que, "nas redes de arrasto, centenas de espécies diferentes ficam amontoadas juntas, sofrem cortes nos corais, são batidas com força contra pedras - durante horas - e então tiradas de dentro d'água, o que causa dolorosa descompressão ([que] faz os olhos dos animais saltarem e seus órgãos internos saírem pela boca)". Nos tanques, a sorte não é menos sinistra. Por exemplo, "parasitas criam lesões abertas e às vezes comem o rosto do peixe até chegar ao osso - [é a] 'coroa da morte'". Os que sobrevivem (uma taxa de mortalidade de 10-30% é considerada "boa") "serão obrigados a passar fome de sete a dez dias para diminuir a excreção durante o transporte até o abate" e nenhuma, "nenhuma lei determina o abate humanitário de peixes". Sabemos que "falar sobre comer animais hoje é falar sobre criação em escala industrial". Cerca de 99% da carne vem dessa indústria, cerca de 450 bilhões de animais por ano. Animais terrestres: os peixes, "receptáculos de nosso esquecimento", não constam nos dados. Assim: "Nenhum peixe tem uma boa morte. Nem um único. Você não precisa se perguntar se o peixe em seu prato teve que sofrer. Teve". Para refletir: "Se algum dia encontrássemos uma forma de vida mais forte e inteligente que a nossa, e ela nos considerasse como nós consideramos os peixes, qual seria nosso argumento contra virar comida?"

6. "A comida - o sabor, a função que tem - justifica, ou não, o processo que a traz até nosso prato"


Uma das questões levantadas pelo autor é a da influência cultural em nossas escolhas alimentares. Com isso, Foer admite a complexidade do problema, que não se limita a recolher dados empíricos sobre a dieta mais nutritiva, mas a compreender a história e a psicologia de povos, famílias e indivíduos. "Comida, família e memória estão ligados de modo primordial". A comida "alimenta e ajuda a lembrar". "Comer e contar histórias são duas coisas inseparáveis". "Nada - nem uma conversa, nem um aperto de mãos, nem mesmo um abraço - estabelece a amizade de modo tão eficaz quanto comer juntos". Assim, "mudar o que comemos e deixar os sabores sumirem gradualmente da nossa memória [criariam] uma espécie de perda cultural, um esquecimento" da "herança ética" do homem do campo e dos valores rurais americanos. No entanto, as pessoas vivem hoje “desligadas dessa realidade, [pois os alimentos são] apresentados em pedaços, tornando fácil pensar pouco, ou não pensar, nos animais dos quais […] vieram”. “Essa relação e familiaridade [de antigamente] garantiam que a produção de alimentos acontecesse de modo coerente com os valores de nossos cidadãos[, mas] a industrialização das fazendas e granjas quebrou esse vínculo e nos lançou na era da falta de conexão”. Um exemplo de tradição alimentar é o que Foer considera o epítome de suas pesquisas: “Se todo este livro pudesse ser decantado numa única pergunta – [...] mas uma pergunta que capturasse por completo o problema de comer e não comer animais -, poderia ser esta: será que devíamos servir peru no dia de Ação de Graças?”. Diante do argumento da tradição, “deixando de lado o fato de que eles [os ancestrais lembrados] faziam muitas coisas que não íamos querer fazer”, se "não temos como nos ater a tudo de que tivemos experiência até hoje", não seria o caso de "acrescentar mais uma camada de intencionalidade", pelo bem de “um animal que nunca respirou ar fresco nem viu o céu até ser enviado para o abate”? Sim, pois, “já que o mundo mudou tanto, os mesmos valores não levam mais às mesmas escolhas”. 

Além disso, "até onde recuam os registros históricos, os humanos expressaram ambivalência sobre a presença inerente da violência e da morte envolvidas em comer animais". Por exemplo, "no Islã e no judaísmo, [essa sensibilidade sobre uso/abuso de animais] levou à determinação de morte rápida". Outros povos preconizavam que “suas vidas só deveriam ser tiradas com reverência”. Mesmo atualmente, "muitos homens do campo se sentiram na obrigação de tratar bem seus animais". Certo criador tradicional até mesmo “pede desculpas aos animais quando eles são enviados ao matadouro”. Paradoxalmente, desenvolveu-se até a teoria de que "a domesticação ocorre quando um punhado de espécies particularmente oportunistas descobriram, através de um processo darwiniano de tentativa e erro, que era mais fácil sobreviver e prosperar numa aliança com os humanos do que sozinhos" e assim haveria "cumplicidade dos animais em sua própria domesticação e abate". No entanto, não estaria aí, no persistente mito do consentimento animal, "uma avaliação humana do que está em jogo, de um desejo de fazer a coisa certa"? Infelizmente, é provável que essa preocupação (ainda que manifestada em justificativas esfarrapadas) desapareça, pois "[quando algo] acontece o tempo todo, [...] tende a desaparecer gradualmente, reduzindo-se a um pano de fundo".

7. "É possível que você possa se dar ao luxo de se importar, mas, com certeza, não pode se dar ao luxo de não se importar"


Foer confessa: "amo um bom filé". No entanto, complementa: "mas há um limite para o meu amor". Considerando que 99% dos animais que comemos vêm das corporações industriais, e que fica "difícil imaginar quem, além daqueles que lucram com ela [a criação industrial], a defenderia", "então, quanto sofrimento é aceitável? É o que está no fundo de tudo isso, e o que cada um tem que perguntar a si mesmo. Quanto sofrimento você vai tolerar em sua comida?". “Aquele pedaço de carne veio de um animal que, na melhor das hipóteses […], foi queimado, mutilado e morto em nome de alguns minutos de prazer para os humanos”. "Isso é o que chamamos de comida. [...] por que o paladar, o mais tosco de nossos sentidos, é isento das regras éticas que governam nossos outros sentidos?"

De fato, “enchi esse livro com um bocado de dados horríveis” mas, por mais que as informações sejam  importantes, "não fornecem, por si sós, significado - sobretudo quando estão tão atreladas a escolhas lingüísticas". Nos EUA, 96% das pessoas concordam que os "animais merecem proteção legal"; 76% afirma que "o bem-estar animal é mais importante [...] do que os preços baixos" e "quase dois terços defendem que sejam aprovadas [...] 'leis severas' no que diz respeito ao tratamento de animais de criação", "no entanto, poucos de nós param para pensar na nossa mais significativa relação com os animais e o meio ambiente. E o que é mais estranho ainda, aqueles que de fato optam por agir de acordo com esses valores nada controversos [...] são considerados marginais ou até mesmo radicais" ("a indústria da carne pinta os vegetarianos como terroristas"). Ah, o papo de vegetarianismo! Outra pecha assacada contra os que se preocupam é a de sentimentalistas. Mas analise: "Dois amigos vão pedir o almoço. Um diz: 'Estou com vontade de comer um hambúrguer' e pede. O outro diz: 'Estou com vontade de comer um hambúrguer', mas se lembra de que há coisas mais importantes para ele do que sua vontade num determinado momento e pede outra coisa. Quem é sentimental?" “Até mesmo dizer 'você está comendo um cadáver', o que é irrefutável, é considerado hiperbólico. Não, é apenas verdade”. Incoerente? Agora, "por favor, tente assistir a essas práticas [vídeo 'Conheça a sua carne']. A maioria das pessoas não faria essas coisas. A maioria de nós não quer nem mesmo assistir. Então, onde está a integridade básica de pagar a outros para fazê-lo por você?"

Sabemos "não apenas que uma pesquisa extensa sobre a pecuária afastaria o pesquisador do consumo de carne, mas que a maioria das pessoas já sabe que é esse o caso". Se você leu este texto até aqui, provavelmente seja alguém que já escapou da contraditória postura de evitar saber porque já sabe que o que há para saber exigirá outra postura. "Tendemos a não pensar nisso porque tendemos a não saber disso", e tendemos a nem querer saber disso porque "é conveniente, político e comum. Mas [lembre!] Também é errado. E não basta sabermos o que é certo e errado; a ação é a outra (e a mais importante) metade da compreensão moral". "Comer carne pode ser 'natural' [...] [mas] toda a sociedade humana e o progresso moral representam uma transcendência explícita do que é 'natural'". Não responder [a este dilema] é uma resposta – somos igualmente responsáveis pelo que não fazemos”, particularmete porque “não tomar uma decisão – comer o mesmo que todo mundo – é tomar a decisão mais fácil, aquela que é cada vez mais problemática”.

"Nosso sustento agora vem da infelicidade. Sabemos que, se alguém oferecer nos mostrar um filme sobre como nossa carne é produzida, será um filme de terror. Talvez saibamos mais do que queremos admitir, guardando o que sabemos nos cantos escuros da nossa memória - rejeitado. Quando comemos carne de criações industriais, estamos vivendo literalmente de carne torturada". "Está errado e as pessoas sabem [disso]. Não precisam ser convencidas disso. Só precisam agir de modo diferente. Não sou melhor do que ninguém nem estou tentando convencer as pessoas a viverem de acordo com os meus padrões do que é correto. Estou tentando convencê-las a viverem de acordo com seus próprios padrões". “O quanto essas selvagerias precisam ser comuns para que uma pessoa decente não tenha mais condições de tolerá-las?”. "Quer estejamos falando de [...] peixes, porcos [etc.], será que esse sofrimento é a coisa mais importante do mundo? Claro que não. Mas essa não é a questão. Será que ele é mais importante do que o sushi, do que o bacon ou do que os nuggets de frango? Essa é a questão". “O quão destrutiva uma preferência culinária precisa ser antes que decidamos comer outra coisa? Se contribuir para o sofrimento de bilhões de animais que levam vidas miseráveis e (com muita freqüência) morrem de formas horrendas não é motivo suficiente, o que seria? Se ser o contribuinte número um à mais séria ameaça ao planeta (o aquecimento global) não é suficiente, o que é? E se você se sente tentado a protelar essas questões de consciência, a dizer 'agora não', então quando?”

“Pensar […] em público liberta forças inesperados no mundo”.

“Nós não podemos alegar ignorância, apenas indiferença. As gerações que vivem hoje são gerações a par dos erros. Temos o fardo e a oportunidade de viver no momento em que a crítica à criação industrial chegou à consciência popular. Somos aqueles a quem será perguntado, com justiça, 'o que você fez quando ficou sabendo a verdade sobre comer animais?'”

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagens populares