Companhia das Letras (2012), 232páginas |
"Nada é mais triste na vida de um homem do que acabar seus dias numa cadeia"
Meu caso foi diferente do que comumente se diz por aí: assistir primeiro ao filme foi o que me motivou a procurar o livro. Carandiru (2003) foi marcante. O livro no qual se baseou deveria ser algo mais! Aquela realidade me era desconhecida na prática (graças a Deus!) e na teoria, e o livro, sempre mais rico em reflexões do que qualquer adaptação cinematográfica poderia ser (mesmo uma excelente), decerto apresentaria, com ainda mais propriedade, conhecimentos sobre este submundo que sempre me deixou perplexo: o da mente criminosa. E foi uma mente em particular que me fez pôr Estação Carandiru (1999) em minha lista de desejos, e daí na pilha de leituras pendentes, e então na escala de tempo dispensado ao mergulho consciencial que a literatura tem o poder de nos fazer viver.
No filme, "Peixeira" (interpretado por Milhem Cortaz) é um assassino que se vê subitamente no limiar do remorso pelas vidas que entregou à morte na ponta da "bicuda". A emocionante cena em que ele adentra uma igreja evangélica e "aceita Jesus", a despeito da arrepiante seqüência da rebelião e invasão do presídio pela PM, que resultou no famigerado massacre de 2 de outubro, com 111 detentos mortos, é a que guardo com maior comoção, tanto pelo milagre do arrependimento redentor como por sua conseqüente escolha de trilhar o caminho inverso dos demais, aquele que o conduziu da morte para a vida.
Dr. Drauzio Varella (1943 - ...): "Aquele mundo havia entranhado em mim, era tarde para fugir dele". |
Varella conta na introdução do livro o que o fez imergir naquele mundo "povoado de maldade". Havia ficado impressionado com o que vira na Penitenciária do Estado quando havia ido lá trabalhar numa campanha pela prevenção da AIDS. "Nas semanas que se seguiram, as imagens do presídio não me saíam da cabeça", disse ele. "Os presos na soleira das celas, o carcereiro com a barba por fazer, um PM de metralhadora distraído na muralha, ecos na galeria mal iluminada, o cheiro, a ginga da malandragem, tuberculose, caquexia, solidão ...". Voltou para se oferecer em serviço voluntário mas foi encaminhado para outra unidade onde estava acontecendo "a festa do HIV": a Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida pelo nome do bairro onde se localizava, Carandiru. Começou em 1989 e serviu ali por treze anos, até 2002, quando o "Casarão" foi desativado e implodido. Em 1999, publicou o livro "Estação Carandiru", que no ano seguinte recebeu o prêmio Jabuti na categoria de não-ficção, e já vendeu mais de 460 mil exemplares - um dos maiores fenômenos editoriais do país.
"Renunciai à esperança, ó vós que entrais!"
(Dante Alighieri, "A Divina Comédia", O Inferno, III, 9)
A primeira impressão que temos ao começar a leitura é a de que Varella é uma espécie de Virgílio nos ciceroneando inferno adentro. Há um quê de narrativa de viagem, de turismo macabro. De fato, é uma visita a uma cidade dentro da cidade: os pavilhões à guisa de bairros, uma praça com chafariz, uma "avenida", ruas (sendo a Dez a mais famosa), campos de futebol, enfermaria, cinema (usado como auditório), igrejas, os "barracos", um hospício, uma zona de degredo dentro da prisão (o "Amarelo"), o degredo do degredo (a "Masmorra"), uma sociedade eternamente em agitação, carteiros, faxineiros, cozinheiros, pastores evangélicos e pais-de-santo, uma economia com moeda própria (cigarro), um famoso grupo de pagode (o "Reunidos por Acaso"), uma bebida típica (a "maria-louca"), campeonatos desportivos, com regulamentos escritos e diretoria, um código penal consuetudinário, até um juiz, eleito pelos detentos, que teria maior responsabilidade que os juízes de muralhas afora, e, como não há cidade alguma em que vivam apenas homens, há também as chamadas "mulheres de cadeia", os travestis, não faltando os casamentos com direito até a acordos pré-nupciais!...
O autor desenvolve seu texto numa progressão que parte do tour pela geografia espacial e social da Casa e vai evoluindo ao ponto em que entra nos capítulos inteiramente dedicados a histórias e biografias, culminando com a narrativa do massacre de 1992, pela óptica dos presos. Ao longo dos 58 capítulos, somos constantemente postos em contato com os detentos através de suas falas em discurso direto, usado por Varella "para que o leitor possa apreciar-lhes a fluência da linguagem, as figuras de estilo e as gírias que mais tarde ganham as ruas". Os capítulos são relativamente curtos e fluentes, sem rebuscamentos, primando mais pela clareza que por uma estilística, que, de qualquer forma, ficaria embotada ante a rude eloqüência dos próprios fatos narrados.
"Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens"
(Do "Juramento de Hipócrates", CRM-SP)
Dr. Drauzio diz na Introdução do livro que ali, na Casa de Detenção, "aprendi medicina". Uma das mensagens mais inspiradoras da obra é esta: o caráter humano da prática médica. Sentindo "um misto de impotência e culpa", Varella assumiu uma tarefa de grande perigo pessoal junto a, no máximo, outros dez médicos, para cuidar de 7 mil presos! Não eram só a falta de recursos - patente num prática clínica não "apoiada em exames laboratoriais e imagens radiológicas", "só com o estetoscópio, como os médicos antigos", a carência de medicamentos básicos, etc. -, e o ânimo corroído da maior parte da equipe - "de forma que poucos [...] exerciam a função com dignidade" -, os obstáculos para a difícil decisão de prestar assistência num "lugar sem dó nem piedade". O dilema moral transparece nestas palavras: "De um lado, não conseguia esquecer o olhar encovado dos doentes; de outro, o que eu tinha a ver com aquilo? Já não bastavam o tempo gasto com palestras e o risco de andar naquele meio? Além disso, muitas das expressões que me sensibilizaram como médico possivelmente nunca haviam demonstrado complacência diante de suas vítimas indefesas, na rua". Prevaleceu a determinação que virou História. "Como médico, não me cabia julgar os crimes dos pacientes, a sociedade tinha juízes preparados para essa função."
Não bastasse que naquele ambiente ressaltasse seu altruísmo, que inspirava o respeito de presos e "funças" (funcionários) por sua "figura científica", seu trabalho frutificou numa medicina cidadã, educativa, por meio deste livro, esclarecedor sobre outros aspectos da saúde, que não se restringem à visão mecanicista de reparar um corpo defeituoso. Os efeitos nefastos da injeção de "farinha" nas veias, a praga mais destruidora ainda do "crack", não só fisiologicamente, mas no âmbito doméstico (pois, "quem tira cadeia é família, que sai de casa no escuro com a sacolada, pega três conduções e ainda reúne o dinheirinho ganho com suor pra vocês gastarem no crack", como disse um diretor do Nove), os hábitos sexuais, a higiene, o trabalho em sua função preservadora da sanidade mental, e a função regeneradora da fé, etc., são exemplificados no texto, cuja lição clara é a de que a dieta (do grego diaítē, "modo de vida") é determinante para a saúde do corpo, da mente e de todo o tecido social.
O autor nos fala de presos atuando como ajudantes e pupilos de medicina, de vontade de aprender, de abnegação, de habilidades especiais demonstradas (como a de Lula, que "retirava ciscos dos olhos com a ponta de uma agulha de injeção"), enfim, de uma prática entre a malandragem de envergonhar o triste exemplo de "um tipo esquisito, de peito peludo e chiclete na boca", um "médico de verdade", de fora da cadeia, incapaz, pelo total distanciamento em relação ao paciente, de dar um diagnóstico acertado, num caso de vida ou morte (confira o capítulo 38, "Edelso"). No caso de Varella, o contato com os pacientes e auxiliares levou a esta reflexão, que deveria ser a de todos os outros que gostam de serem chamados "doutores": "Essa aura de respeito sincero em torno da figura do médico que lhes trazia uma pequena ajuda exaltou em mim o senso de responsabilidade em relação a eles. Com mais de vinte anos de clínica, foi no meio daqueles que a sociedade considera como escória que percebi com mais clareza o impacto da presença do médico no imaginário humano, um dos mistérios da minha profissão".
(Ah! O "Lula" citado não tem nada a ver com aquele outro "molusco"... Nem Joaquim Barbosa conseguiu romper o estigma dos dizeres de uma placa de cobre, na sala de um dos diretores do Carandiru: "É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar preso na Casa de Detenção".)
"Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens"
(Do "Juramento de Hipócrates", CRM-SP)
Dr. Drauzio diz na Introdução do livro que ali, na Casa de Detenção, "aprendi medicina". Uma das mensagens mais inspiradoras da obra é esta: o caráter humano da prática médica. Sentindo "um misto de impotência e culpa", Varella assumiu uma tarefa de grande perigo pessoal junto a, no máximo, outros dez médicos, para cuidar de 7 mil presos! Não eram só a falta de recursos - patente num prática clínica não "apoiada em exames laboratoriais e imagens radiológicas", "só com o estetoscópio, como os médicos antigos", a carência de medicamentos básicos, etc. -, e o ânimo corroído da maior parte da equipe - "de forma que poucos [...] exerciam a função com dignidade" -, os obstáculos para a difícil decisão de prestar assistência num "lugar sem dó nem piedade". O dilema moral transparece nestas palavras: "De um lado, não conseguia esquecer o olhar encovado dos doentes; de outro, o que eu tinha a ver com aquilo? Já não bastavam o tempo gasto com palestras e o risco de andar naquele meio? Além disso, muitas das expressões que me sensibilizaram como médico possivelmente nunca haviam demonstrado complacência diante de suas vítimas indefesas, na rua". Prevaleceu a determinação que virou História. "Como médico, não me cabia julgar os crimes dos pacientes, a sociedade tinha juízes preparados para essa função."
Não bastasse que naquele ambiente ressaltasse seu altruísmo, que inspirava o respeito de presos e "funças" (funcionários) por sua "figura científica", seu trabalho frutificou numa medicina cidadã, educativa, por meio deste livro, esclarecedor sobre outros aspectos da saúde, que não se restringem à visão mecanicista de reparar um corpo defeituoso. Os efeitos nefastos da injeção de "farinha" nas veias, a praga mais destruidora ainda do "crack", não só fisiologicamente, mas no âmbito doméstico (pois, "quem tira cadeia é família, que sai de casa no escuro com a sacolada, pega três conduções e ainda reúne o dinheirinho ganho com suor pra vocês gastarem no crack", como disse um diretor do Nove), os hábitos sexuais, a higiene, o trabalho em sua função preservadora da sanidade mental, e a função regeneradora da fé, etc., são exemplificados no texto, cuja lição clara é a de que a dieta (do grego diaítē, "modo de vida") é determinante para a saúde do corpo, da mente e de todo o tecido social.
O autor nos fala de presos atuando como ajudantes e pupilos de medicina, de vontade de aprender, de abnegação, de habilidades especiais demonstradas (como a de Lula, que "retirava ciscos dos olhos com a ponta de uma agulha de injeção"), enfim, de uma prática entre a malandragem de envergonhar o triste exemplo de "um tipo esquisito, de peito peludo e chiclete na boca", um "médico de verdade", de fora da cadeia, incapaz, pelo total distanciamento em relação ao paciente, de dar um diagnóstico acertado, num caso de vida ou morte (confira o capítulo 38, "Edelso"). No caso de Varella, o contato com os pacientes e auxiliares levou a esta reflexão, que deveria ser a de todos os outros que gostam de serem chamados "doutores": "Essa aura de respeito sincero em torno da figura do médico que lhes trazia uma pequena ajuda exaltou em mim o senso de responsabilidade em relação a eles. Com mais de vinte anos de clínica, foi no meio daqueles que a sociedade considera como escória que percebi com mais clareza o impacto da presença do médico no imaginário humano, um dos mistérios da minha profissão".
(Ah! O "Lula" citado não tem nada a ver com aquele outro "molusco"... Nem Joaquim Barbosa conseguiu romper o estigma dos dizeres de uma placa de cobre, na sala de um dos diretores do Carandiru: "É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar preso na Casa de Detenção".)
"[...] Os homens justos são mais sábios, melhores e mais poderosos do que os homens injustos, e [...] estes são incapazes de agir harmonicamente - e, quando dizemos que às vezes levaram a bom termo um assunto em comum, não é, de maneira nenhuma, a verdade, porque uns e outros não seriam poupados se tivessem sido totalmente injustos; por isso, é evidente que existia neles uma certa justiça que os impediu de se prejudicarem mutuamente, na época em causavam dano às suas vítimas, e que lhes permitiu realizar o que realizaram; lançando-se em seus injustos empreendimentos, só em parte estavam pervertidos pela injustiça, visto que os inteiramente maus e os totalmente injustos são também incapazes de fazer seja o que for."
(Platão, "A República", Livro I)
(Platão, "A República", Livro I)
Essas palavras do sábio grego se aplicam com precisão à sociedade intra-muros da Detenção. Talvez as passagens mais repletas de potencial filosófico e psicológico do livro sejam as que tratam dos códigos de conduta, do contrato social, vigente na cadeia. A curta Introdução já enfatiza a relevância desse aspecto da vida carcerária, coberto de permeio em todo livro: "Em cativeiro, os homens, como os demais grandes primatas [...], criam regras de comportamento com o objetivo de preservar a integridade do grupo. Esse processo adaptativo é regido por um código penal não escrito, como na tradição anglo-saxônica, cujas leis são aplicadas com extremo rigor".
Em um capítulo dedicado a ela ("Anjos-Demônios"), tomamos conhecimento da instituição da Faxina: é surpreendente. Cerca de mil presos têm passe-livre para desempenhar atividades que auxiliam a administração prisional, algo que seria impensável não fosse esse arranjo de mútua colaboração e respeito: "Nas piores fases, o presídio chegou a conter 9 mil presos"; só no pavilhão Cinco moram 1600 homens, "o triplo do que o bom-senso recomendaria para uma cadeia inteira", e apenas seis ou sete funcionários, à noite, são escalados para cuidar dessa multidão explosiva. A manutenção da ordem, "um dos mistérios da cadeia", depende tanto (ou mais) dos próprios detentos quanto (ou do que) dos funcionários. Houve momentos em que até a segurança pessoal dos carcereiros esteve sob os cuidados da organização interna exercida pelos "faxinas".
Há uma série de requisitos para alguém assumir um posto nesse serviço público interno estratégico para os presos e para o próprio Estado, regras que vêm da "common law" carcerária: o faxina "não [pode] fazer dívida, [deve] respeitar visitas alheias, ajudar os necessitados, colaborar para a solução das desavenças e obedecer às decisões do grupo", não pode ser delator (alcagüeta), endividado, "ter ameaçado de morte um desafeto e não cumprir" (grifo nosso), "ter levado tapa na cara", ser "laranja" (alguém que assume culpa por outro em estado de necessidade, diferente do "sangue-bom", que faz o mesmo, mas por altruísmo), etc. Para a chefia da Faxina, ocorre uma verdadeira "seleção natural do líder". Varella testemunha que são sempre "homens de poucas palavras e extremo bom-senso, que assumiram a liderança graças à habilidade de resolver conflitos e formar coalizões". Nas palavras de um deles, "não é como na rua, que um louco pode [...] chegar até a [ser] presidente da república [...] aqui o líder sabe ouvir a voz da razão". Seu papel é o de um verdadeiro juiz, tanto mais poderoso porque lá "eu assino pena de morte". Deixo para o leitor procurar no texto um desses casos de julgamento.
O código consuetudinário cobre vasto espectro das relações internas, sempre cominando graves penas. Na Casa, ao contrário do ditado, ladrão que rouba ladrão não tem perdão. Os "ratos-de-xadrez" são duramente agredidos e até mortos. Infligir as regras de limpeza dos "barracos" e "galerias", de higiene alimentar, de urbanidade para com times visitantes, familiares, acompanhantes íntimas e médicos, enfim, os "princípios da higiene e civilização", acarretam graves conseqüências para o intra-infrator. No caso das atividades desenvolvidas pelo Dr. Drauzio, havia um "pacto de respeito ao cinema", "jamais uma palavra grosseira", visto que resultava em "uma coisa boa para nós", "conscientizar os manos e dar uma distração para a coletividade"; perturbar as palestras seria "se colocar contra o bem geral". No caso das visitas íntimas (ver os capítulos 6, "Fim de semana", e 7, "Visitas íntimas"), "jamais cobiçar a mulher do próximo e manter impecável a ordem geral"; "quando um casal passa, todos baixam a cabeça" e no caso da intimidade sexual, fazendo revesamento no uso privativo da cela, velada pelo "come-quieto" (a cortina), "a pontualidade é britânica". Já à noite, mesmo nas celas superlotadas, quando é necessária uma arrumação no estilo de sardinhas enlatadas, ou pior, com escala entre os que deitam e os que esperam em pé para dormir, "sono de malandro é sagrado". A regra é "respeitar sono alheio", porque "acordar vagabundo, é sem chance", "é um problema problemático". As punições vão do espancamento, mutilações, passando pelo degredo no Amarelo, até à infame execução coletiva, com a "bicuda" passando de mão em mão, e, dessa forma, "os ladrões tornam explícito que seu código penal é implacável quando as vítimas são eles próprios", e que não há perdão: "Entre nós, um crime jamais prescreve".
Cá com meus botões...
Ao ler certas passagens, poderíamos ser engodados pela ilusão de um despertar da consciência para a vida urbana, colaborativa, ordeira, acatadora da lei e da ordem, entre os presos do Carandiru. Afinal, os detentos validam a própria necessidade de leis, de punições, de autoridade, das quais se escusaram nas ruas. "A mínima perturbação na rotina de uma cadeia deixa os homens apreensivos". No entanto, a "certa justiça" que deveria existir entre eles, como fala Platão, que lhes permite atuar em sinergia dentro e fora (nas empreitadas criminosas), não vai longe o suficiente para que compreendam a incoerência entre o acatamento a ela, no âmbito do Crime, e seu total desprezo, no âmbito da Sociedade. A vida de bandido, o "sangue nos olhos", é motivo de orgulho. O preso acha "a coisa mais bonita do mundo" chegar ao presídio cercado de respeito por suas façanhas lá fora. O Crime é uma profissão. O revólver, "minha ferramenta de trabalho". As consecuções ilegais o deixam "embriagado de sucesso". Mesmo ao viver aquela vida, e sofrer aqueles efeitos, o criminoso diz "[eu] penso as idéias certas". Há dois pesos e duas medidas. Em suas idéias "certas", não entra a questão da disparidade entre as sentenças proferidas por eles mesmos contra os outros e as proferidas contra eles pelas leis da sociedade. A auto-contradição da injustiça, do mal, é um dos argumentos do filósofo grego. Pensadores que veem o mal como a verdadeira tendência da natureza, e sinal de poder entre os homens, ignoram a lógica de Platão, que vê somente na harmonia a possibilidade de manutenção da vida e dos processos que a mantêm pulsante e feliz. A malandragem que o diga!
O que impede que o senso de valor da ordem civil, ou pelo menos os rudimentos dele, se expanda para englobar a inteira sociedade? O desejo prepotente de ver-se satisfeito a qualquer custo, especialmente ao custo do outro, como um extrativista social? Que conexões lógicas, falta ao criminoso aprender, "no quadro-negro da vida", para querer integrar-se ao grande esforço coletivo cuja conveniência ele mesmo reconhece ao beneficiar-se dos produtos, conhecimentos e atitudes humanas que amparam sua própria existência? Agressividade, violência, corrupção, irreverência, condutas desagregadoras, vícios, etc., glorificados em filmes, novelas, "esportes" (como MMA e UFC), etc., ou simplesmente tolerados em nossa apatia, não proveriam o estofo psicológico, moral, na gênese da conduta antissocial da criminalidade? Não estaria a incoerência da própria sociedade "inocente" tutelando a mente criminosa como uma mãe esquizofrenogênica?
Em um capítulo dedicado a ela ("Anjos-Demônios"), tomamos conhecimento da instituição da Faxina: é surpreendente. Cerca de mil presos têm passe-livre para desempenhar atividades que auxiliam a administração prisional, algo que seria impensável não fosse esse arranjo de mútua colaboração e respeito: "Nas piores fases, o presídio chegou a conter 9 mil presos"; só no pavilhão Cinco moram 1600 homens, "o triplo do que o bom-senso recomendaria para uma cadeia inteira", e apenas seis ou sete funcionários, à noite, são escalados para cuidar dessa multidão explosiva. A manutenção da ordem, "um dos mistérios da cadeia", depende tanto (ou mais) dos próprios detentos quanto (ou do que) dos funcionários. Houve momentos em que até a segurança pessoal dos carcereiros esteve sob os cuidados da organização interna exercida pelos "faxinas".
Há uma série de requisitos para alguém assumir um posto nesse serviço público interno estratégico para os presos e para o próprio Estado, regras que vêm da "common law" carcerária: o faxina "não [pode] fazer dívida, [deve] respeitar visitas alheias, ajudar os necessitados, colaborar para a solução das desavenças e obedecer às decisões do grupo", não pode ser delator (alcagüeta), endividado, "ter ameaçado de morte um desafeto e não cumprir" (grifo nosso), "ter levado tapa na cara", ser "laranja" (alguém que assume culpa por outro em estado de necessidade, diferente do "sangue-bom", que faz o mesmo, mas por altruísmo), etc. Para a chefia da Faxina, ocorre uma verdadeira "seleção natural do líder". Varella testemunha que são sempre "homens de poucas palavras e extremo bom-senso, que assumiram a liderança graças à habilidade de resolver conflitos e formar coalizões". Nas palavras de um deles, "não é como na rua, que um louco pode [...] chegar até a [ser] presidente da república [...] aqui o líder sabe ouvir a voz da razão". Seu papel é o de um verdadeiro juiz, tanto mais poderoso porque lá "eu assino pena de morte". Deixo para o leitor procurar no texto um desses casos de julgamento.
O código consuetudinário cobre vasto espectro das relações internas, sempre cominando graves penas. Na Casa, ao contrário do ditado, ladrão que rouba ladrão não tem perdão. Os "ratos-de-xadrez" são duramente agredidos e até mortos. Infligir as regras de limpeza dos "barracos" e "galerias", de higiene alimentar, de urbanidade para com times visitantes, familiares, acompanhantes íntimas e médicos, enfim, os "princípios da higiene e civilização", acarretam graves conseqüências para o intra-infrator. No caso das atividades desenvolvidas pelo Dr. Drauzio, havia um "pacto de respeito ao cinema", "jamais uma palavra grosseira", visto que resultava em "uma coisa boa para nós", "conscientizar os manos e dar uma distração para a coletividade"; perturbar as palestras seria "se colocar contra o bem geral". No caso das visitas íntimas (ver os capítulos 6, "Fim de semana", e 7, "Visitas íntimas"), "jamais cobiçar a mulher do próximo e manter impecável a ordem geral"; "quando um casal passa, todos baixam a cabeça" e no caso da intimidade sexual, fazendo revesamento no uso privativo da cela, velada pelo "come-quieto" (a cortina), "a pontualidade é britânica". Já à noite, mesmo nas celas superlotadas, quando é necessária uma arrumação no estilo de sardinhas enlatadas, ou pior, com escala entre os que deitam e os que esperam em pé para dormir, "sono de malandro é sagrado". A regra é "respeitar sono alheio", porque "acordar vagabundo, é sem chance", "é um problema problemático". As punições vão do espancamento, mutilações, passando pelo degredo no Amarelo, até à infame execução coletiva, com a "bicuda" passando de mão em mão, e, dessa forma, "os ladrões tornam explícito que seu código penal é implacável quando as vítimas são eles próprios", e que não há perdão: "Entre nós, um crime jamais prescreve".
Cá com meus botões...
O que impede que o senso de valor da ordem civil, ou pelo menos os rudimentos dele, se expanda para englobar a inteira sociedade? O desejo prepotente de ver-se satisfeito a qualquer custo, especialmente ao custo do outro, como um extrativista social? Que conexões lógicas, falta ao criminoso aprender, "no quadro-negro da vida", para querer integrar-se ao grande esforço coletivo cuja conveniência ele mesmo reconhece ao beneficiar-se dos produtos, conhecimentos e atitudes humanas que amparam sua própria existência? Agressividade, violência, corrupção, irreverência, condutas desagregadoras, vícios, etc., glorificados em filmes, novelas, "esportes" (como MMA e UFC), etc., ou simplesmente tolerados em nossa apatia, não proveriam o estofo psicológico, moral, na gênese da conduta antissocial da criminalidade? Não estaria a incoerência da própria sociedade "inocente" tutelando a mente criminosa como uma mãe esquizofrenogênica?
"Mil poderão cair ao teu lado, e dez mil à tua direita; mas tu não serás atingido."
(A Bíblia, Salmo 91:7)
Não terminei minha viagem pessoal pelo Carandiru sem esperanças. Nosso Virgílio nos guiou sãos e salvos pelos diversos recantos do submundo do cárcere, mas cada turista vê e retém o que mais lhe vai na alma. Dante peregrinou por regiões escabrosas em busca de sua Beatriz. Na Casa de Detenção de São Paulo, nossa Beatriz é uma fagulha de fé na regeneração do homem, uma luz bruxuleante no imo do ser, que faísca e põe em conflagração um ardor por renovação, por reconciliação com o próximo e com Deus.
Certa vez ouvi uma ilustração interessante. Imagine um recipiente com água suja, que não pode ser embocado, a cujo interior não temos acesso dada a estreiteza do gargalo. Não temos como simplesmente aspirar o conteúdo: o objetivo não é esvaziá-lo, mas enchê-lo de água pura. A solução: aplicar um jorro contínuo de água limpa pela abertura, que revolverá o conteúdo velho, substituindo-o pouco a pouco pelo novo. O recipiente é o ser humano; o gargalo é sua consciência; o conteúdo, suas crenças, valores, ideias, etc. Como disse um detento a respeito da cadeia: "Aqui desemboca o esgoto da cidade". Lá, ao contrário do influxo de princípios salutares, ocorre o inverso: "A cadeia perversa a mente do sentenciado num tanto tal, que o cara está levando os golpes e muitos que não têm nada a ver com a fita pegam carona na desgraça do alheio e soltam a faca também, só de maldade. Isso aqui é a maior covardia!". De onde viria o fluxo que faria a faxina do espírito humano empesteado no Crime?
Dois pavilhões proveem dessa água. O Cinco, considerado o "pavilhão da ralé" pelos próprios detentos, endereço do deprimente "Amarelo", abriga uma igreja evangélica. O Oito, onde "mora quem já passou pelo jardim de infância da cadeia", possui uma capela católica, templos da Assembléia de Deus, da Igreja Universal e da Igreja Deus é Amor, e um centro de Umbanda. De longe, o mais forte apelo à renovação vem dos crentes. A Assembléia de Deus é "o grupo evangélico de presença mais forte na casa". A rouquenha pregação dos pastores opera milagres. A velha fórmula de que "mente vazia é oficina do Diabo", lucidamente reconhecida nas palavras de um dos internos, que disse que "a cadeia seria menos perigosa, com essas mentes malignas ocupadas", encontra prática e resultado nas atividades incessantes dos fiéis. Eles "rezam dia e noite". O capítulo 18, "O rebanho", aborda as ações implementadas pelos fiéis e as dificuldades enfrentadas por esse dízimo humano, os mais de 10% da população da Casa que oram "com devoção para ir embora deste lugar maligno". Como diz um dos diáconos, "a rotina da Igreja na cadeia não dá tempo capcioso". Os requisitos para se tornar pastor, após quatro anos de conduta ilibada, também exigem do crente uma renovação verdadeira, que permite distinguir o trigo do joio, porque o inimigo também semeia a cizânia naquela seara. Na verdade, desde fora da cadeia, como no caso de Miguel (capítulo 34), que levava a Bíblia na mão quando ia vender cocaína, "só para desbaratinar", o lobo em pele de ovelha é um dos escolhos da missão evangelizadora. Ainda assim, "é uma igreja e um centro de recuperação ao mesmo tempo", "talvez o único disponível no presídio".
Foi para lá, num dia de chuva, que se dirigiu Valente, para fugir do aguaceiro. Lá fora das muralhas, havia sido um assassino que chegou a matar "porque estava mesmo sem fazer nada". Com sete homicídios, havia sido condenado a 130 anos de cadeia. Atrás das grades, "até piorei pra pior", e achava que sua "vida não tinha mais jeito". Passando a chuva encostado à parede duma igreja, ouviu uma passagem do profeta Isaías, e ... o capítulo 54, "O filho pródigo", conta mais da história dessa consciência que é representada no filme como "Peixeira" - memorável pela infusão de esperança no gênero humano.
Dois pavilhões proveem dessa água. O Cinco, considerado o "pavilhão da ralé" pelos próprios detentos, endereço do deprimente "Amarelo", abriga uma igreja evangélica. O Oito, onde "mora quem já passou pelo jardim de infância da cadeia", possui uma capela católica, templos da Assembléia de Deus, da Igreja Universal e da Igreja Deus é Amor, e um centro de Umbanda. De longe, o mais forte apelo à renovação vem dos crentes. A Assembléia de Deus é "o grupo evangélico de presença mais forte na casa". A rouquenha pregação dos pastores opera milagres. A velha fórmula de que "mente vazia é oficina do Diabo", lucidamente reconhecida nas palavras de um dos internos, que disse que "a cadeia seria menos perigosa, com essas mentes malignas ocupadas", encontra prática e resultado nas atividades incessantes dos fiéis. Eles "rezam dia e noite". O capítulo 18, "O rebanho", aborda as ações implementadas pelos fiéis e as dificuldades enfrentadas por esse dízimo humano, os mais de 10% da população da Casa que oram "com devoção para ir embora deste lugar maligno". Como diz um dos diáconos, "a rotina da Igreja na cadeia não dá tempo capcioso". Os requisitos para se tornar pastor, após quatro anos de conduta ilibada, também exigem do crente uma renovação verdadeira, que permite distinguir o trigo do joio, porque o inimigo também semeia a cizânia naquela seara. Na verdade, desde fora da cadeia, como no caso de Miguel (capítulo 34), que levava a Bíblia na mão quando ia vender cocaína, "só para desbaratinar", o lobo em pele de ovelha é um dos escolhos da missão evangelizadora. Ainda assim, "é uma igreja e um centro de recuperação ao mesmo tempo", "talvez o único disponível no presídio".
Foi para lá, num dia de chuva, que se dirigiu Valente, para fugir do aguaceiro. Lá fora das muralhas, havia sido um assassino que chegou a matar "porque estava mesmo sem fazer nada". Com sete homicídios, havia sido condenado a 130 anos de cadeia. Atrás das grades, "até piorei pra pior", e achava que sua "vida não tinha mais jeito". Passando a chuva encostado à parede duma igreja, ouviu uma passagem do profeta Isaías, e ... o capítulo 54, "O filho pródigo", conta mais da história dessa consciência que é representada no filme como "Peixeira" - memorável pela infusão de esperança no gênero humano.
Anexo: Salmo 51 - um salmo de arrependimento e renovação
Mostra-me favor, ó Deus, segundo a tua benevolência.
Segundo a abundância das tuas misericórdias, extingue as minhas transgressões.
2 Lava cabalmente de mim o meu erro
E purifica-me mesmo do meu pecado.
3 Pois eu mesmo conheço as minhas transgressões
E meu pecado está constantemente diante de mim.
4 Pequei contra ti, somente contra ti,
E fiz o que é mau aos teus olhos,
A fim de que te mostres justo ao falares,
Para que sejas puro ao julgares.
5 Eis que em erro fui dado à luz com dores de parto,
E em pecado me concebeu minha mãe.
6 Eis que te agradaste da própria veracidade no íntimo;
E faze-me saber pura sabedoria no segredo do íntimo.
7 Que tu me purifiques de pecado com hissopo, para eu ser limpo;
Que tu me laves, para eu me tornar mais branco do que a neve.
8 Que tu me faças ouvir exultação e alegria,
Para que jubilem os ossos que quebrantaste.
9 Esconde a tua face dos meus pecados
E extingue até mesmo todos os meus erros.
10 Cria em mim um coração puro, ó Deus,
E põe dentro de mim um espírito novo, firme.
11 Não me lances fora de diante da tua face;
E não tires de mim o teu espírito santo.
12 Restitui-me deveras a exultação da salvação por ti,
E que tu me sustentes com um espírito disposto.
13 Vou ensinar aos transgressores os teus caminhos,
Para que os próprios pecadores retornem diretamente a ti.
14 Livra-me da culpa de sangue, ó Deus, o Deus da minha salvação,
Para que a minha língua proclame em júbilo a tua justiça.
15 Ó Jeová, que tu me abras estes lábios,
Para que a minha própria boca conte o teu louvor.
16 Pois não te agradas de sacrifício — senão eu [o] daria;
Não tens prazer em holocausto.
17 Os sacrifícios a Deus são um espírito quebrantado;
Um coração quebrantado e esmagado não desprezarás, ó Deus.
18 Na tua boa vontade, trata deveras bem a Sião;
Que tu construas as muralhas de Jerusalém.
19 Neste caso te agradarás dos sacrifícios de justiça,
Do sacrifício queimado e da oferta inteira;
Neste caso se oferecerão novilhos no teu próprio altar.
(Fonte: http://www.jw.org/pt/publicacoes/biblia/nwt/livros/salmos/51/)
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