terça-feira, 27 de novembro de 2012

"A República", de Platão





A tirinha do Cebolinha foi meu primeiro contato com Platão. Ainda guri, sem entender o sentido da piada, perguntei a minha mãe de que se tratava. Respondeu que "Platão" era um filósofo grego. Daí que "grego" é quem nasce na Grécia e que "filósofo" é um cara muito inteligente que vive pra pensar. A princípio, "filósofo" me pareceu boa coisa, até que percebi que pensar por conta própria é muito problemático e que o termo, hoje em dia, é usado praticamente como pejorativo.

Como pensador, porém, Platão não se limitou a raciocínios estéreis, mas tratou de aplicar a inteligência na compreensão dos problemas humanos, entre os quais, o do governo e o da justiça. Sua importância é tamanha que se diz que "a história da filosofia não passa de uma sucessão de notas de rodapé da sua obra ", ou, menos hiperbólico, que "tudo o que a filosofia, a partir dele, tomou como tema teve origem nele, seja para aprofundar seu pensamento, seja para refutá-lo". É o único filósofo antigo cujas obras nos chegam praticamente completas. Além disso, Platão é um grande escritor, significando isso que seus textos primam pela clareza e não pela prolixidade cabalística dos que acham inteligente ser ininteligível. Enfim, contrariamente a seus intentos, suas obras, contudo, trazem a primeira grande sistematização de todo o desenvolvimento filosófico grego até então. 

Para a maioria, no entanto, é mais conhecido pelas teorias da "imortalidade da alma" e das "almas gêmeas". Uma das passagens mais conhecidas de suas obras, "a alegoria da caverna", aparece neste seu livro mais famoso, "A República".

Platão viveu entre c. 428-347 a.C. em Atenas, rico filho de família engajada politicamente. Na juventude, foi um dos "desviados" por Sócrates, cuja condenação à morte, em 399 a.C., fê-lo desiludir-se profundamente com os assuntos de Estado. Em uma carta sua, disse: "A legislação e a moralidade estavam de tal forma corrompidas que eu, antes cheio de ardor para trabalhar pelo bem público, considerando essa situação e vendo que tudo rumava à deriva, acabei por ficar aturdido". Daí a relação da Filosofia com a vida prática: "Fui então irresistivelmente levado a louvar a verdadeira filosofia e a proclamar que somente à sua luz se pode reconhecer onde está a justiça na vida pública e na vida privada". Ainda: "Os males não cessarão para os homens antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder". Dessas conclusões, Platão fundou uma escola, a Academia, em 387 a.C. e tentou "transformar um príncipe mimado [o de Siracusa] num homem capaz de conduzir os assuntos de uma cidade importante". O fracasso desta última empreitada, mostrando que educação não é suficiente para produzir bons governantes, contrasta com o sucesso da Academia, modelo que até hoje inspira as universidades.

"A República" é escrita na forma de diálogos, nos quais Sócrates, como personagem real ou como porta-voz das idéias do autor, defende o valor da Justiça em si mesma, desdobrando o tema de várias formas. O título original, "Pólis", significa, literalmente, "cidade", "cidade-estado", e dá nome à obra mesmo sendo um tópico secundário, uma abordagem da problemática da importância da Justiça. 

Tudo começa com uma conversa sobre a velhice e as questões suscitadas pelo temor da morte. O idoso Céfalo levanta a polêmica: "Quando alguém chega à idade em que toma consciência de que logo morrerá, surgem-lhe o temor e a preocupação a respeito de assuntos nos quais antes não pensava.(...) Tudo o que se conta a respeito do Hades, [o mundo dos mortos] onde serão expiados os atos maus praticados em vida, todas essas fábulas das quais até então ele fazia troça, agora aterrorizam sua alma, por temer que correspondam à verdade (...) inicia a fazer cálculos e a analisar se cometeu alguma injustiça com alguma pessoa". Refutando as explicações de seus interlocutores, de que Justiça é retribuição devida ou o interesse do mais forte, Sócrates arquiteta uma solução, partindo de uma visão macroscópica, isto é, o que é e para que serve a Justiça para um corpo social, até chegar no seu significado para o indivíduo e sua alma no plano espiritual.

A forma escolhida por Platão, o diálogo (do verbo grego "dialégo", algo como "trocar raciocínios"), é instrutiva além da própria temática. Geralmente as obras começam com convites para uma conversação, se houver tempo livre. "Tempo livre", em grego, é "skholé", palavra que dá origem a "schola" (latim) e daí "escola". O tempo livre é aproveitado para a edificação mútua da inteligência. Amigos, no intervalo do trabalho, reforçam os laços fraternais se estimulando a pensar e debatendo questões relevantes tanto no campo secular como no transcendente. Consta que a originalidade grega na filosofia, nas ciências e nas artes ocorreu num surto de cerca de 200 anos e que nunca antes nem depois a humanidade viveu um período tão fecundo. Não seria porque as pessoas perderam o gosto pela conversa séria? Não será porque tenham perdido a afeição ("philo") à sabedoria ("sophia")?

Quando Sócrates entra no artifício da cidade-modelo, mais uma vez se estabelece um padrão de sanidade mental: enquanto as discussões geralmente giram em torno de opiniões e preferências pessoais, Platão firma o emprego de parâmetros para a correta apreciação da validade dos argumentos. Usando a mais maleável das ferramentas, o pensamento, molda um ponto de referência equilibrado para as conclusões e decisões coletivas. Quando os industriais definem a "Política de Zero Defeitos", e os economistas, o deflator do PIB, não fazem mais do que repetir o método socrático-platônico de lançar bases seguras para interpretação de dados e elaboração de informações. 

A dialética socrática, consistindo de perguntas e respostas, ciceroneia o interlocutor (aprendiz) nos rumos da formação da capacidade especulativa, ensinando a fazer questionamentos corretos. A dúvida é o maior propulsor do desenvolvimento da inteligência e do acúmulo ("logia") de arte/ciência ("tekhno"). Como disse o filósofo inglês Bertrand Russel, "na Filosofia, o importante não são tanto as respostas, mas sim as perguntas". "Como a vida não dá as questões, problematizá-la, e delimitar os problemas com precisão, já é meio caminho andado em direção à resposta mais conveniente." (Leonardo Möller, na introdução do livro "Consciência", do médium Robson Pinheiro.)

O livro levanta diversas questões. Por exemplo:

- "Nenhum governante, seja qual for a natureza de sua autoridade, na medida em que é governante, não objetiva e não ordena a sua própria vantagem, mas a do indivíduo (...) para quem excerce sua arte". Para Platão, alguma coisa é o que é quando realiza o conceito que a define. Um governante que busque seus próprios interesses não é "governante" na plena acepção do termo. " A cidade onde os que devem mandar são os menos apressados na busca do poder é a mais bem governada." Ainda, é necessário ter competência exclusiva para tanto, como para pilotar um navio necessita-se de um piloto experiente, não de um oleiro. Não à toa a palavra "governo" deriva do grego "kybérnesis", "direção do barco"!

- O sistema educacional não se deve restringir à mera tradição de conhecimento. As mentes devem ser preparadas para o exercício da cidadania, das virtudes necessárias à manutenção da prosperidade do Estado. Para tanto, o entretenimento social não deve estimular a degradação desses valores, pois "o desprezo pela lei se insinua aí sem que se dê conta", não "é possível não imitar aquilo de que a todo momento nos aproximamos com admiração", "os costumes dos cidadãos arrastam todo o resto para o lado a que pendem" e "o impulso da educação determina tudo o que se segue". A dieta, do grego "diaite", "modo de vida", é, ao mesmo tempo, fruto e semente do sistema social. Então, uma pergunta de mais de 2.300 anos que nos faz pensar ainda hoje: "Haverá para uma cidade maior prova do vício e da baixeza de sua educação do que a necessidade de médicos e juízes?"

- Diz ainda que a Justiça é necessária até mesmo para os que cometem injustiças em comum, porque é a Justiça que impede os malfeitores de causarem danos entre si e levarem a termo sua maldade.

- Platão também chega à conclusão de que a democracia é uma dos piores regimes de governo, não só por seus efeitos sobre o Estado, como por sua "personalidade" no âmbito da vida individual. Deixo para os leitores acompanharem o raciocínio do mestre grego.

Ainda que não se concorde com todos os argumentos de Platão, com seus métodos e conclusões, o processo em si, o bate-papo sério, criativo e bem-humorado, já nos transporta para o cálido e luminoso berço do Ocidente e, quem sabe, como na Biologia a ontogenia recapitula a fologenia, aqui tenhamos também a oportunidade de refazer/reiniciar, na nossa formação intelectual individual, o percurso da formação de uma consciência da Civilização?

Por Lykándros.


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