Ed. Globo (2009), 398 páginas |
"Cada vez que as massas tomavam o poder público, era a felicidade, mais do que a verdade e a beleza, o que importava"
"E se...?". A faculdade de imaginação praticamente impossibilita o homem de permanecer inculpe no exercício de seu livre-arbítrio. Aldous Huxley propõe nesta obra um formidável desdobramento ficcional de decisões e valores que vêm se formando e intensificando desde que a Ciência e a Tecnologia, ao contrário do sábado, deixaram de ser feitas para o homem, e restringiram a uma única alternativa a solução para a felicidade, cujo conceito também se restringiu a standards praticáveis em esteira de produção.
De fato, retomando a antiga ferramenta lógica do "reductio ad absurdum" (redução ao absurdo), de que Platão se valeu para a construção de sua "República", Huxley erige uma utopia no ano 2540 d.C. como conseqüência de premissas já assentes na constituição moral da sociedade no início do séc. XX. Data emblemática desta "transvaloração de todos os valores", como diria Nietzsche, o ano da fabricação do primeiro automóvel Modelo "T", 1908, torna-se o marco inicial desta nova era que deixou para trás "uma coisa chamada Cristianismo", "uma coisa chamada Deus", "a liberdade de ser ineficiente e infeliz" e "a ética e a filosofia do subconsumo".
"Mais lágrimas são derramadas pelas preces atendidas que pelas não atendidas."
A frase de Truman Capote bem pode expressar a preocupação de Huxley ao elaborar seu prognóstico do nebuloso porvir da Humanidade nesta fábula futurista (para não dizer "profética"). Já em sua epígrafe, uma citação do filósofo existencialista cristão Nikolai Berdyaev mune o leitor de uma perspectiva que faz ver a tão desejada conquista social da felicidade com uma "questão muito mais angustiante" a solucionar: "como evitar a realização definitiva" da utopia? "As utopias são realizáveis. A vida marcha em direção às utopias. E talvez comece um novo século em que os intelectuais e as classes cultas sonharão com um meio de (...) retornar a uma sociedade menos utópica, menos 'perfeita' e mais livre".
Com esse introito, a até então insuspeita frase extraída de "A tempestade", de Shakespeare, que dá título à obra, assume uma nova e irônica dimensão: o autor, inglês, faz um jogo de conceitos envolvendo um excerto do célebre dramaturgo compatriota, símbolo da cultura universal, e um construto social distópico que "comeu a civilização".
Oh, maravilha!
Quantas formosas criaturas há aqui!
Oh, admirável mundo novo,
Que tem nele tais pessoas!
Com 18 capítulos, "Admirável mundo novo" descreve uma sociedade dominada pela Tecnologia a serviço da "padronização do produto humano". Cenário e trama servem de pretexto para trazer à atenção dos leitores "a insanidade da Utopia", "a tirania assistencial da Utopia" de um mundo reconstruído para a consecução de uma felicidade que intuímos aquém do espírito humano mas que, para uma sociedade desesperançada de sonhos mais elevados, é pelo menos realizável com as ferramentas já disponíveis na Indústria e no pensamento científico dela subserviente. "O tema [deste livro] não é o avanço da ciência em si; é esse avanço na medida em que afeta os seres humanos", prefacia o autor.
Para manutenção desse "novo mundo", uma "revolução verdadeiramente revolucionária", acima da superficialidade da política, emprega "as ciências da vida [para] mudar radicalmente a qualidade dela". Um governo totalitário, então, planifica uma nova experiência humana com o fim de resolver "o problema da felicidade", e para isso, parte de seu conceito empiricamente observado de que o desejo último das massas é estabilidade econômica e satisfação sexual. Para sistematização de tal desígnio, toda uma estrutura de instituições é posta em funcionamento mediante engenharia genética e psíquica e artifícios sociais e químicos: "ectogênese", "bokanovskização", "hipnopedia", "condicionamento neopavloviano", "predestinação social", "cinto malthusiano", "soma", rituais orgíacos, etc., são técnicas que reformam o homo sapiens sapiens, tornando-o um artefato de si mesmo. Desaparece o conceito de "família", "mãe" torna-se "aquela palavra obscena", fidelidade sexual é tratada como doença, crianças participam de jogos sensuais e são preparadas para a morte, a literatura desaparece, nomes pessoais são padronizados e classes distintas de humanos são fabricadas, dos alfas, que ocupam cargos mais elevados no sistema, aos semi-aleijões, formados de milhares de clones zigóticos de menor oxigenação cerebral e vocabulário monossilábico, pois, afinal, cada um tem física e psicologicamente apenas o suficiente para desempenhar seu papel social, e amar sua destinação inelutável.
"'As flores do campo e as paisagens', advertiu, 'têm um grave defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica'."
Os protagonistas são todos nascidos nessa era, e a história corre no ano de 632 d.F. - "depois de Ford". Bernard e Lenina, cada uma à sua maneira, vão-se tornando culpados do "crime mais odioso" que há, a "falta de ortodoxia na conduta". A trama gira em torno dos conflitos que ocorrem quando emerge a individuação de pessoas que escapam à planificação psicológica. O paroxismo é atingido quando o autor introduz um personagem, oriundo de uma reserva de "selvagens", remanescente de nossa civilização atual, que entra em choque com a mentalidade dessa nova civilização: poderíamos dizer, um encontro daquele que reza com o mundo pelo qual rezou.
Afora a qualidade filosófica do texto, que Huxley humildemente não reconhece em sua obra, o estilo cativante nos prende à leitura desde o primeiro parágrafo. A narrativa é intrigante por seu caráter visual, cinematográfico mesmo, que captura as ações numa linguagem cheia de quadros e ritmos. Exemplo curioso disso são os diálogos intercalados, que transmitem a simultaneidade dos cenários como numa tela "picture-in-picture".
Com esse introito, a até então insuspeita frase extraída de "A tempestade", de Shakespeare, que dá título à obra, assume uma nova e irônica dimensão: o autor, inglês, faz um jogo de conceitos envolvendo um excerto do célebre dramaturgo compatriota, símbolo da cultura universal, e um construto social distópico que "comeu a civilização".
Oh, maravilha!
Quantas formosas criaturas há aqui!
Oh, admirável mundo novo,
Que tem nele tais pessoas!
Aldous Leonard Huxley (1894 - 1963) |
Para manutenção desse "novo mundo", uma "revolução verdadeiramente revolucionária", acima da superficialidade da política, emprega "as ciências da vida [para] mudar radicalmente a qualidade dela". Um governo totalitário, então, planifica uma nova experiência humana com o fim de resolver "o problema da felicidade", e para isso, parte de seu conceito empiricamente observado de que o desejo último das massas é estabilidade econômica e satisfação sexual. Para sistematização de tal desígnio, toda uma estrutura de instituições é posta em funcionamento mediante engenharia genética e psíquica e artifícios sociais e químicos: "ectogênese", "bokanovskização", "hipnopedia", "condicionamento neopavloviano", "predestinação social", "cinto malthusiano", "soma", rituais orgíacos, etc., são técnicas que reformam o homo sapiens sapiens, tornando-o um artefato de si mesmo. Desaparece o conceito de "família", "mãe" torna-se "aquela palavra obscena", fidelidade sexual é tratada como doença, crianças participam de jogos sensuais e são preparadas para a morte, a literatura desaparece, nomes pessoais são padronizados e classes distintas de humanos são fabricadas, dos alfas, que ocupam cargos mais elevados no sistema, aos semi-aleijões, formados de milhares de clones zigóticos de menor oxigenação cerebral e vocabulário monossilábico, pois, afinal, cada um tem física e psicologicamente apenas o suficiente para desempenhar seu papel social, e amar sua destinação inelutável.
"'As flores do campo e as paisagens', advertiu, 'têm um grave defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica'."
Os protagonistas são todos nascidos nessa era, e a história corre no ano de 632 d.F. - "depois de Ford". Bernard e Lenina, cada uma à sua maneira, vão-se tornando culpados do "crime mais odioso" que há, a "falta de ortodoxia na conduta". A trama gira em torno dos conflitos que ocorrem quando emerge a individuação de pessoas que escapam à planificação psicológica. O paroxismo é atingido quando o autor introduz um personagem, oriundo de uma reserva de "selvagens", remanescente de nossa civilização atual, que entra em choque com a mentalidade dessa nova civilização: poderíamos dizer, um encontro daquele que reza com o mundo pelo qual rezou.
Afora a qualidade filosófica do texto, que Huxley humildemente não reconhece em sua obra, o estilo cativante nos prende à leitura desde o primeiro parágrafo. A narrativa é intrigante por seu caráter visual, cinematográfico mesmo, que captura as ações numa linguagem cheia de quadros e ritmos. Exemplo curioso disso são os diálogos intercalados, que transmitem a simultaneidade dos cenários como numa tela "picture-in-picture".
No prefácio de 1946, além de um fim alternativo para um de seus personagens centrais, Huxley faz uma revisão deste seu mais famoso livro, e comenta como acredita que a Utopia descrita nele possa verdadeiramente se concretizar. No passo-a-passo para o "admirável mundo novo", as sementes já lançadas nestes dias encontram campo fértil nas aspirações dos povos que, com cujos líderes, concorrerão para um crescente estatismo e governos completamente totalitários.
Aldous Huxley, que cria numa solução diversa, no conhecimento unitivo do Tao, na sabedoria perene, de caráter místico, como chave para os problemas do mundo, bem estava em concordância com o sábio chinês Lao Tsé, que alertou para este que é o problema central das Utopias futuras e atuais:
(Tao Te Ching, poema 65, versos 3 e 4).
Obrigada pela colaboração! Instigante a leitura deste livro: uma sociedade essencialmente tecnológica, isenta de sentimentos, motivada pela satisfação sexual como sedativo para eventuais questionamentos. Onde está a utopia? Considerando que o termo se refere a uma ideia perfeita de sociedade, "um projeto humanista de transformação social e representa aspectos capitais do humanismo renascentista".... e esta sociedade da obra resenhada, pode ser perfeita no organograma, mas sua essência está fadada ao fracasso tendo em vista a existência de "seres humanos" a quem foram "permitidos" a capacidade de "pensar", atitude perigosa que leva ao questionamento. Poderias esclarecer esse pormenor?
ResponderExcluirHuxley diz que esse é "um livro sobre o futuro" e a questão que permeia a obra é a da felicidade. O enredo explica a origem desse projeto de felicidade que, para os habitantes do "admirável mundo novo" é uma utopia no sentido otimista da palavra. É o tal livre-arbítrio: o das massas que restringem felicidade a consumismo e orgasmo (aliás, isso já é realidade presente!) e o dos líderes, que desejam unicamente poder. Totalitarismo e espírito de rebanho, eis a fórmula.
ExcluirNo entanto, é uma distopia do ponto de vista do autor, que vê nessa realização futura, nessa conquista da "felicidade" (enfraquecimento semântico), um contra-progresso, pois que evolui a Tecnologia (nem tanto a Ciência) e involui a humanidade.
Lembro duma entrevista em que um repórter inglês (ou estadunidense) discute com o guru indiano Bhaktivedanta Swami Prabhupada sobre o progresso. Horrorizado com o comentário do guru, de que a humanidade não evoluiu, e que vive unicamente para satisfações sensoriais (comer, dormir e acasalar-se), o repórter perguntou, indignado: "Como não!? O homem foi à Lua!". A resposta: "Sim! Foi dormir lá."
Vai entrar na minha pequena (cof cof) lista de leitura! Obra a ser futuramente adquirida e lida, pois do jeito que a humanidade caminha, é bom estarmos preparados para o que há de vir... ou, tomando conhecimento, tentar mudar o que está ao nosso alcance (se é possível alguma mudança...). Abraços e obrigada pelos esclarecimentos.
ResponderExcluirEssa obra, assim como 1984 do George Orwell, já está na minha lista de leitura há algum tempo. Já adquiri as duas obras há algum tempo inclusive (rs)
ResponderExcluirConfesso que a resenha me deixou ainda mais curioso para conhecer esse livro do Huxley.
Parabéns, Daniel!
Li no final do ano passado!
ResponderExcluirMuitos talvez não percebam, mas a nossa sociedade atual se parece DEMAIS com a descrita. Não em termos de tecnologia e reprodução, mas os ideais, as divisões de classes e preconceitos, a vontade de não sentir nada que seja muito intenso, a sensação de que se alguém foge um pouco do controle, então está errado, tem uma patologia e precisa ser medicado. E quando as pessoas surtam por estarem fora do padrão, gente! Lindo! Para quem estuda Psicologia, esse livro é um prato cheioooo.. nem consigo quantificar!
Falou tudo: prato cheio pra Psicologia! Porque o foco mesmo é o futuro do ser humano, não das bugigangas criadas por ele, por mais sofisticadas que sejam. O barato dessas obras distópicas (incluindo 1984, Laranja Mecânica e Fahrenheit 451) é justamente a análise do ser, que se mantém incrivelmente atual apesar de as previsões tecnológicas já terem ou não se cumprido.
ExcluirGosto de sempre relembrar uma entrevista do guru indiano Swami Prabhupada (sim, o "criador" dos Hare Krishnas) em que ele fez pouco caso da evolução do homem. O repórter ficou abismado e jogou na cara do guru a mais estupenda realização daqueles dias: "Mas o homem foi à Lua!"... Prabhupada, que havia respondido que o homem não evoluiu porque continua a viver em torno de funções animais - comer, acasalar e dormir -, respondeu: "Sim, foi dormir lá".
Parece que para Huxley o homem até involuiu... ou talvez seja uma evolução sinistra isso de usar sua faculdade singular de pensar para reduzir todo senso de felicidade ao desfrute "capitalista selvagem" das próprias funções físicas...
Seria excelente uma obra que se propusesse a analisar a psique desse "homem do futuro" :-)
Fica a dica para monografia dos formandos de Psicologia...