Ed. Nova Fronteira, 351 páginas |
“1822” é o segundo livro da série escrita por Laurentino Gomes para retratar os principais acontecimentos da história brasileira ao longo do século 19. Abrange o intervalo compreendido entre o retorno da família real a Lisboa e a morte de D. Pedro I. A fórmula de sucesso de “1808” foi mantida: há um instigante resumo-do-resumo na capa e o texto é leve e descomplicado, mas ao mesmo tempo detalhista e repleto de referências bibliográficas, permitindo que o leitor reconstrua, de forma confiável, a realidade daquela época.
Embora muito parecido com o antecessor no formato, “1822” é mais gostoso de ler. Nele, não ocorreu a abordagem exaustiva de figuras pouco importantes para o desenrolar dos fatos (caso do arquivista José Joaquim dos Santos Marrocos e sua família, que receberam uma atenção especial em “1808”). Além disso, a mistura de sentimentos que a narrativa evoca é mais diversificada, trazendo doses de humor (presente, por exemplo, na descrição do grito da Independência, dado por um príncipe transtornado pela diarreia), drama (confira a trajetória de vida da princesa Leopoldina e a solidão do pequeno Pedro de Alcântara), erotismo (que permeiou a relação entre D. Pedro I e Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa de Santos) e heroísmo épico (principalmente no penúltimo capítulo, sobre as lutas travadas pelos liberais até vencerem o exército absolutista em Portugal, contrariando todas as probabilidades de fracasso).
D. Pedro I, para os portugueses, é o heróico D. Pedro IV. |
As nuances de caráter dos personagens centrais foram muito bem capturadas por Laurentino Gomes. No final de sua vida, D. Pedro I se tornou o herói do liberalismo constitucional em Portugal, após um governo que beirou a tirania no Brasil. Envolvia-se de forma intensa e direta com todos os assuntos que podia, para garantir o bom andamento das coisas. No Brasil, chegou a cortar o próprio salário para ajudar a equilibrar as contas do novo país, que já nascera endividado. Anos depois, em Portugal, gastou parte de sua fortuna para financiar as despesas do exército liberal. Abdicou de dois tronos em favor dos filhos, mas não teve a mesma deferência com sua primeira esposa, Leopoldina, que morreu jovem e deprimida enquanto o imperador mantinha um relacionamento escandaloso com a marquesa de Santos. José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, merece o título pelo papel-chave que desempenhou junto ao imperador na organização do Brasil. Extremamente inteligente, visionário e ponderado, era também vaidoso, boêmio e tinha um grande talento para a poesia. Abolicionista convicto, enxergava a escravidão como um entrave ao desenvolvimento do Brasil, posição que levou seus adversários a afastarem-no definitivamente da política após a partida de D. Pedro I. Já o almirante Lord Cochrane, cujas façanhas também foram decisivas para a independência e coesão do Brasil, agiu pensando apenas no dinheiro que receberia por elas. Não satisfeito com as recompensas prometidas, saqueou a cidade de São Luís após livrá-la do domínio português. Dessa forma, passou para a história brasileira como herói e vilão ao mesmo tempo. A marquesa de Santos, por sua vez, soube aproveitar muito bem toda a influência que exercia sobre o imperador para obter inúmeros favores para si e sua família. Não se importou com a publicidade do relacionamento, aceitando de bom grado o papel de dama de honra da imperatriz traída para poder circular com liberdade pela corte. Foi, ainda, suspeita de ter atentado contra a própria irmã, que também era amante de D. Pedro. Ao final da vida, havia se tornado uma simpática senhora que se dedicava a obras de caridade.
José Bonifácio (1763 - 1838) |
Dessa forma, as principais figuras de “1822” são bastante humanas e não se encaixam nos estereótipos presentes na literatura. Escapam dessa constatação apenas a imperatriz Leopoldina, descrita como uma verdadeira mocinha – ingênua, generosa e sofredora; e o príncipe D. Miguel, irmão de D. Pedro I, que pode ser considerado o vilão da narrativa. Após tentar destronar o pai, foi exilado e retornou sob diversas imposições dos constitucionalistas, para logo em seguida desfazer o acordo e todo o aparato do governo constitucional, sendo proclamado pelas cortes como rei absoluto de Portugal. Prendeu e executou milhares de pessoas, e seu exército lutou impiedosamente contra o grupo liberal liderado por D. Pedro até ser finalmente derrotado, dois anos depois.
O livro não deixou de ressaltar a importância da guerra em terras brasileiras para a conquista da independência. Durante 21 meses, milhares de homens – em sua maioria, pessoas de pouca ou nenhuma experiência militar, recrutadas sob condições precárias – lutaram contra as tropas portuguesas, em todas as regiões do país. A eles, juntaram-se mercenários e camponeses europeus, recrutados como colonos. Os camponeses foram enganados por falsas promessas dos representantes brasileiros, que lhes prometeram vários benefícios em troca da migração. Findas as batalhas contra os portugueses, logo começaram as tensões internas acerca da nova Constituição, que culminaram na Confederação do Equador, duramente reprimida por D. Pedro I.
É possível traçar vários paralelos entre a sociedade brasileira descrita em “1822” e a contemporânea. A deliberada exclusão social, a corrupção generalizada e o controle exercido pelos grandes empresários sobre as decisões dos governantes são problemas gravíssimos que persistem no país sob outras roupagens, quase duzentos anos depois. Dessa forma, a obra de Laurentino Gomes não se limita a fornecer um panorama do passado ao leitor, mas desperta também reflexões e perguntas sobre as forças que controlam o presente e podem determinar o futuro do Brasil.
Mariana, obrigada pela colaboração! Espero que tua resenha motive outras pessoas a lerem essa obra. De fato, conhecer História nos permite entender o que vivemos hoje; e, quem sabe, motivar mudanças de atitudes para enfrentar o futuro, quebrando ciclos que notamos nesse processo de formação de uma nação. Abraços e esperamos contar com tua colaboração outras vezes! Valeu!
ResponderExcluirEste e os outros dois da série deviam estar em cada biblioteca escolar desse país.
ResponderExcluirComo no caso de "1808", aqui também me surpreendeu a abordagem humana, especialmente a de D. Pedro I, por quem sempre tive antipatia. O "brasileiro e rapazinho", porém, amadureceu, pelo menos após voltar para Portugal, o que nos faz pensar que papel ele ainda poderia ter tido no Brasil, mais comedido e menos estouvado. Interessante é que, pra mim, ele volta a ser um herói nacional, mas não pelo que fez aqui, mas pelo que fez lá na Terrinha. Exemplar o espírito humano demonstrado por ele ao combater o despótico D. Miguel, encerrando uma guerra fratricida e um ciclo de desgraças que já vinha desde as Guerras Napoleônicas. Ter perdoado os revoltosos, os inimigos, os traidores, e trabalhado cuspindo sangue até o último dia de sua vida pelo progresso de Portugal são revelações que nos fazem retomar o respeito por ele.
Fico ainda puto com a forma como tratava Leopoldina. Ela não merecia aquilo só porque não entrou no jogo das vaidades femininas e se dedicou mais ao intelecto e às obras de caridade, perdendo o encanto para o marido. E talvez, mais que a D. Pedro, seja a ela que o Brasil deva o apressamento da independência política.
Mais que recomendada, é obra obrigatória.