sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Resenha: "O estrangeiro" (Albert Camus, 1942)

Ed. Record, 122 páginas
"Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem dificuldade passar 100 anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar" (Meursault, protagonista de "O estrangeiro").

Este é o primeiro romance do filósofo franco-argelino Albert Camus (pronuncia-se /albérr kãmü/, com "biquinho"), laureado com o prêmio Nobel de 1957 "por sua importante produção literária que, com clarividente seriedade, ilumina os problemas da consciência humana em nossos tempos". É considerado uma das mais espetaculares estreias literárias de seu século.

O enfoque de Camus é corriqueiramente classificado como existencialista, o que o associa, a contra-gosto, a Sartre, embora sempre referisse a si mesmo como "filósofo do absurdo". Produzindo nessa linha, Camus espera que os paradoxos propostos em sua obra promovam o debate público, o que, no caso de "O estrangeiro", gira em torno da questão quanto a se o alheamento de uma pessoa aos sentimentos de seu tempo e cultura permitem-nos pelo menos presumir sua inocência.

O livro é dividido em duas partes e até quase o fim da primeira (que tem seis capítulos) quase que nos perguntamos por que cargas d'água perdemos tempo com ele. De fato, quem vê literatura como escrito pleno de palavras retumbantes, de estilística refinada ou de sentenças grandiloqüentes, decerto sentirá enfado com sua narrativa quase tosca, de frases curtas e linguagem prosaica. Também inquietará a aparente ausência de propósito numa história que mal flui no tempo, sem destino, como retalhos de incidentes comezinhos, destituídos de valor.

Albert Camus
(1913 - 1960)
Se não bastar a só intuição de que o famoso filósofo não poderia ser exalçado à plana dos grandes pensadores do século XX por inépcia literária, o acontecimento final da primeira parte nos deixará expectantes quanto a uma reviravolta que não só redimirá como carregará de significado as páginas "perdidas" da obra: é que essa preliminar do livro é lida "a posteriori", quando somos arrastados com Meursault, o protagonista, para o tribunal, pelo estúpido homicídio cometido por ele. Lá, cada passagem insignificante torna-se decisiva num julgamento que nos faz testemunhas arrependidas do pouco caso que somos levados a fazer de seus dias precedentes ao crime, ainda que...

... Ainda que a inteira narrativa tenha sido (e mantenha-se) em primeira pessoa, forçando-nos a acompanhar a vida do réu com interesse pessoal. Então sentimos que falhamos quando, mesmo "atordoado pelo calor e pela perplexidade", Meursault ajuíza que "quando me acontece uma coisa, prefiro estar presente" e nos damos conta de que não estávamos com ele, mesmo coagidos pelo pronome e número verbal.

Ignorante de que é um réu predestinado, Meursault vive degredado num mundo sensório que é seu espaço existencial: o sol africano, as espadas de luz refletindo das areias da praia, "o cheiro de couro e esterco do carro, o do verniz e do incenso", o roçar nos seios de Marie, etc., são as "recordações suficientes" de uma experiência cotidiana que, por "perfeitamente natural" que fosse, constituía "um mundo que me era pra sempre indiferente", mas que lhe custará um julgamento de través, não tanto pelo crime, mas pela impassibilidade demonstrada entre o funeral de sua mãe e o dia em que deu "quatro batidas secas na porta da desgraça".

Em 1949, Camus visitou o Brasil e fez um pedido estranho para um filósofo: assistir a uma partida de futebol. E talvez venha do esporte o veredito de nossa sensibilidade: quando a regra é sentir e expressar emoções, quem considera "friamente as coisas" tem "a estranha impressão de estar sendo olhado pelo que era realmente" - alguém que cometeu o absurdo de não entrar no jogo!

3 comentários:

  1. Daniel, obrigada mais uma vez! Confesso que eu tinha um certo preconceito com Camus. Acabava vendo-o como um "escritor para intelectuais". Desde que começamos este projeto de resenhas para motivar a leitura, fui derrubando estereótipos e aceitando desafios. E mais, quando leio as resenhas das obras que eu ainda não me permiti a leitura, perco o medo. Aumenta meu desejo de sair da categoria do "ouvi dizer que é um bom livro", para a categoria "sim, já li; eu conheço esta obra". Obrigada mais uma vez, e que mais pessoas percebam esse encanto que boas obras literárias nos trazem. Abraços!

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  2. Li esse livro muito recentemente! Fiquei apaixonada pelo autor. Não pelo livro, mas pelo autor. Pela narrativa, dá para perceber que ele tinha um respeito profundo pelo ser humano, no sentido do não julgamento, do permitir que seu personagem seja quem ele é.. não sei explicar muito bem essa minha sensação. Talvez você entenda também..

    O personagem principal tem uma moral própria e vive de acordo com isso, se encaixando na sociedade que o cerca, a todo momento sendo julgado por outras pessoas. Uns acham seu comportamento certo ou errado, outros acham apenas estranho, mas não fazem questão de compreender. É incrível como o Meursault não se apega às coisas. Apenas as vive, sente, pensa sobre.
    O Albert Camus foi incrível quando retratou a paz do Meursault e o caos fora dele, em decorrência do assassinato. Não foi um livro que me fez sonhar, ou pelo qual me apaixonei. Mas, gostei demais de ter lido e já recomendei para algumas pessoas! É de uma delicadeza impressionante.

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    1. Obrigado por compartilhar suas impressões a respeito da obra aqui conosco!

      Da minha parte, até acho que o nome do personagem poderia ser Meurt-seul (Morre-só), porque ele vive sem ligações, que são os sentimentos... Até com Marie... ele "desfruta" dos acontecimentos, inclusive dela - como acontecimento mais do que como pessoa - como uma máquina de processar estados físicos e psíquicos, mas sem conferir valor/significado ao que acontece... Sempre aquele "pode ser" ou "tanto faz"... Na verdade, vejo a paz dele como muito cômoda: é muito fácil viver em ataraxia sem assumir nenhum posicionamento diante do mundo, sem se apaixonar (sofrer) por interpretações, visões, compreensões pessoais da vida... Lógico demais. O que seria excelente se não fosse tão estéril afetivamente.

      Decerto há outros leitores que divergem de nós dois.

      É livro pra ler mais de uma vez... e ficar ruminando... Talvez por isso seja tão curto: porque o verdadeiro trabalho da leitura começa depois que a terminamos :-)))

      Abraço!

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