sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Resenha: "1808" (Laurentino Gomes, 2007)

Ed. Planeta: 367 páginas
"Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil".

Laurentino Gomes, jornalista, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, já coloca na capa do livro informações a respeito da sua obra que nos fazem, no mínimo, ficarmos curiosos com o que será apresentado. Trata-se de conteúdo com o qual todo estudante já teve contato, sabendo sua trajetória e desfecho: a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil, em fuga à investida de Napoleão Bonaparte na Europa. O diferencial, contudo, é o estilo da abordagem: o autor consegue transformar um evento histórico em algo "jornalístico", fazendo-nos sentir como se vivêssemos os acontecimentos naquele momento.


Dividido em 29 capítulos, o autor discorre sobre os eventos que motivarão a vinda da Família Real para o Brasil, acompanhada de uma imensa corte; e o impacto que isso causará em vários aspectos da vida na colônia mais próspera de Portugal. Ainda, o retorno para Portugal, novamente por força das circunstâncias que não deixaram outra alternativa; a permanência de D. Pedro e o inevitável clima de independência que passara a fazer parte do Brasil, que não mais admitia voltar a ser uma mera colônia.

Paralelo a esses relatos, também acompanharemos a vida do arquivista português Luiz Joaquim dos Santos Marrocos. Não se lembra dele da relação de personagens históricos que devíamos saber para as provas escolares? Eis o encanto: a vida de uma pessoa comum, a qual será marcada pelas mudanças que decorrerão da nova realidade que a fuga da Família Real e o refúgio na colônia próspera irão trazer, tanto para os protagonistas históricos, como para a vida provinciana da colônia brasileira. Um passo cuja repercussão não permitirá retrocesso no âmbito político e econômico, embora fosse do interesse português que a sua colônia favorita retomasse ao seu status de subordinação após o retorno de D. João VI a Portugal.

Os capítulos 1 ao 6 serão dedicados a dar ao leitor uma visão dos acontecimentos na Europa, fazendo também uma radiografia das relações pessoais existentes no núcleo familiar real. Como toda família, cheia de conflitos, mas cuja repercussão vai muito além das paredes de sua morada. Casamento por intermédio de acordos, planos de deposição e assassinato... enfim, dramas nada corriqueiros e bem dramáticos. Uma especial atenção ao Capítulo 6, onde teremos a apresentação do nosso personagem comum, nada histórico, o arquivista real Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, mas que reflete muito bem a repercussão desses acontecimentos na vida dos súditos, sejam os de Portugal, sejam os do Brasil.

No capítulo 7, teremos o relato da viagem em si: atravessar o Oceano Atlântico rumo à colônia, local onde nunca antes alguém da monarquia do Velho Mundo havia pisado os pés (aliás, é a primeira vez na história que isso ocorrerá). Cem dias de viagem, em que todos os infortúnios possíveis e imagináveis numa viagem desse tipo, naquela época, aconteceram. A leitura deste fato nos permite visualizar o progresso fenomenal que temos hoje de, em 12 horas de viagem de avião, chegarmos no continente europeu. Vejamos um breve trecho a respeito dos percalços encontrados durante o trajeto marítimo:

"Depois de algumas semanas, já na altura da linha do Equador, o frio do inverno europeu deu lugar ao calor insuportável, agravado pela ausência de ventos numa região famosa pelas calmarias do Atlântico. O excesso de passageiros e a falta de higiene e saneamento favoreceram a proliferação de pragas. No Afonso de Albuquerque, em que viajava a princesa Carlota Joaquina, uma infestação de piolhos obrigou as mulheres a raspar os cabelos e a lançar suas perucas ao mar. As cabeças carecas foram untadas com banha de porco e pulverizadas com pó anti séptico."(pág. 85)

A chegada no Brasil, as transformações que decorrem da presença da Família Real Portuguesa e de sua imensa corte, as mudanças políticas e econômicas que serão exigidas pela aliada Inglaterra mudarão por completo a vida da colônia. Uma sociedade fundamentada na economia escravagista, essencialmente rural, inculta e de modos grosseiros. Os capítulos 8 ao 25 irão deliciar e, por vezes, horrorizar o leitor com informações minuciosas sobre o dia a dia na colônia, assim como detalhes a respeito das figuras relevantes desse relato histórico. Teremos o retrato de uma sociedade que tenta parecer mais do que é, e os conflitos que decorrem do barril de pólvora que é uma economia depender da força de seus escravos, tratados como propriedade, muito longe da ideia de seres humanos. Vistos como mercadorias, tratados como tais, os escravos constituíam a roldana que movia as engrenagens do sistema econômico colonial:

"Quando a corte portuguesa chegou ao Brasil, navios negreiros vindos da costa da África despejavam no Mercado do Valongo entre 18 000 e 22 000 homens, mulheres e crianças por ano. Permaneciam em quarentena, para serem engordados e tratados das doenças. Quando adquiriam uma aparência mais saudável, eram comercializados da mesma maneira como hoje boiadeiros e pecuaristas negociam animais de corte no interior do Brasil. A diferença é que, em 1808, a 'mercadoria' destinava-se a alimentar as minas de ouro e diamante, os engenhos de cana de açúcar e as lavouras de algodão, café, tabaco e outras culturas que sustentavam a economia brasileira."(pág. 213)

O curioso aqui, vale destacar, é que notaremos na Família Real uma repulsa a essa prática e, até mesmo, o desejo de acabar com o tráfico negreiro. Contudo, durante a narrativa e tomando conhecimento dos interesses envolvidos, notaremos que nenhuma política é feita exclusivamente com base na vontade de uma única pessoa, ainda que essa pessoa fosse um monarca absoluto. As regras do jogo econômico acabam por definir as decisões políticas que serão tomadas, em muito se assemelhando à realidade de hoje. Como podem ver, conhecer a história é entender os acontecimentos atuais.

Os capítulos finais serão dedicados a descrever o panorama político que levou a Família Real a retornar para Portugal, mas deixa D. Pedro como regente, para administrar a ex-colônia que, na altura dos acontecimentos, fora promovida a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815). Um final que não é nem um pouco calmo: já denota a intensidade dos conflitos que ocorrerão até e após o histórico Grito do Ipiranga que irá formalizar o que já era inevitável, a declaração de independência do Brasil. Terminamos a leitura com relatos que instigam a continuar pelos demais volumes da série (1822 e 1889). Abaixo, temos o breve relato do clima que fazia parte da nova sociedade brasileira, que pegara gosto por fazer parte do Reino, ainda que na prática continuasse sendo explorada, agora não só por Portugal, mas também pela Inglaterra. Ainda assim, o clima político na admitia retrocessos:

"Dois dias mais tarde, o rei partia do Rio de Janeiro, contra a sua vontade e sem saber exatamente o que o esperava em Portugal. Deixava para trás um país completamente mudado, que o acolhera com tanta alegria treze anos antes e no qual o processo de independência era já previsível e inevitável. Tão certa era essa possibilidade que, poucas horas antes da cerimônia fúnebre do dia 24, D. João chamou o filho mais velho e herdeiro da coroa, então com 22 anos, para uma última recomendação: 'Pedro, se o Brasil se separar, antes seja para ti, que me hás de respeitar, que para alguns aventureiros'." (pág. 281-282)

Por fim, descobrimos o desenrolar da vida do nosso personagem do povo, o arquivista real Luiz Joaquim dos Santos Marrocos. Percebemos que as repercussões dos acontecimentos públicos e notórios não são muito diferentes do que ocorre na vida privada dos que sofrem as consequências das decisões tomadas pelos seus governantes.



Livros da série:

3 comentários:

  1. O que mais gostei nesse livro foi que, além da enxurrada de informações (apresentadas, não como números e dados secos academicistas, mas como elementos de um cenário que o estilo envolvente da narração faz mergulhar o leitor), o autor nos põe diante das figuras humanas da História: não são nomes de vultos nacionais que designam ruas e monumentos públicos, mas pessoas que conhecemos como reais, como nossos pares na trama das vicissitudes da vida, que quase sentimos, dadas as qualidades literárias mencionadas, serem nossos contemporâneos.

    Fiquei particularmente grato pela apresentação de D. João, sua figura quase cômica, mas redimida pela superação de inúmeras dificuldades de ordem política, social e mesmo, e mais importante, de sua constituição psicológica tímida e indecisa, com bom senso e humanismo.

    Este é o primeiro livro de uma trilogia sobre a formação do país como nação moderna que vem a suprir uma deficiência editorial no cultivo da cidadania entre a população, já que não bastam obras contendo dados frios para ler e reter na memória, é preciso tê-los palpitantes no coração, comovendo as novas gerações a tomarem parte neste que é um evidente projeto chamado Brasil.

    Valeu, Leila!

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    1. Agradeço o comentário e, mais ainda, as informações que podemos notar em tuas palavras: a humanização dos personagens históricos. Impossível alguém entrar em contato com o texto desse livro e, ainda assim, dizer que não gosta de História por ser uma matéria "decorativa". São obras como essas, numa linguagem fluente e com conteúdo de qualidade, que demonstram que conhecer a História é emocionante e, pasmem, surpreendente! Saber os fatos por antecipação não diminuem o interesse da leitura, pelo contrário, deixa-nos ávidos por mais! Abraços.

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  2. Confesso que já havia tentado ler essa obra logo que foi lançada, mas não consegui evoluir na leitura, mesmo gostando bastante de livros de História.

    O Daniel pontuou muito bem a questão da humanização de personagens históricos, com seus defeitos e qualidades, como qualquer pessoa comum. Esse é um aspecto que me agrada bastante nesse tipo de obra.

    O fato de terem participado de acontecimentos históricos relevantes não deve ser motivo para uma exposição fantasiada, na qual sejam mostrados como detentores de capacidades sobre humanas, para assim fazer jus ao reconhecimento e admiração por seus feitos.

    Essa forma de exposição acaba por conferir um tom propagandístico que não me agrada.

    Nos livros que já li sobre o Mandela, mesmo sendo um grande personagem da história mundial, ele é sempre apresentado de forma bastante humana e isso não o faz menos digno de admiração.

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