sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Resenha: Grandes Esperanças (Charles Dickens, 1861)

Ed. Landmark (2013): 528 páginas
"No pequeno mundo em que vivem as crianças, não importa quem as crie, nada é mais delicadamente percebido, nada é mais delicadamente sentido que a injustiça."

Charles Dickens foi um escritor inglês muito popular no Reino Unido durante a era vitoriana (período de reinado da Rainha Vitória que se iniciou em junho de 1837 e se estendeu até janeiro de 1901). A primeira infância foi caracteriza por um padrão de vida razoável, que lhe permitiu estudos de qualidade e leituras dos clássicos que lhe influenciaram depois.

Todavia, por conta da prisão do pai por dívidas, foi obrigado a trabalhar, quando fez 12 anos,  "na empresa Warren’s onde se produzia graxa para os sapatos com betume, junto à actual Estação ferroviária de Charing Cross. O seu trabalho consistia em colar rótulos nos frascos de graxa, ganhando, por isso, seis xelins por semana. Com o dinheiro, sustentava a família, encarcerada na prisão para devedores, em Moure onde ia dormir"  (saiba mais aqui).

Notaremos em seus romances uma crítica social, não muito comum na época, sobre as condições de trabalho e a questão da possibilidade de ascensão social vinculada a fatores externos, como o recebimento de herança. Sendo esta última a situação vivida por seu pai que os fez melhorar de vida novamente, embora sua mãe o tenha mantido na fábrica ainda por certo tempo, fato que lhe deixou mágoas.

Entre dezembro de 1860 e agosto de 1861, publicara na revista semanal "All the year round" o folhetim que deu origem ao romance "Grandes Esperanças".

Trata-se de romance para leitores que apreciam uma boa história que tem amor impossível, superação, reviravoltas, assim como personagens que são difíceis de engolir, mas que sabemos existir na vida real, mas tudo isso sem ser piegas. Esse romance de Charles Dickens é do tipo que vamos lendo, conhecendo os personagens, descobrindo-os e nos afeiçoando até o ponto que desejamos que seus destinos sejam de acordo com a nossa vontade.

Para aumentar o suspense, teremos o momento do "quase", sendo que ainda não estamos perto do fim. Não é um romance que se lê com sofreguidão, mas que nos acompanha na bolsa para, sempre que tivermos oportunidade, podermos continuar a leitura, descobrindo os próximos passos dos acontecimentos. Uma história que nos envolve pela sinceridade com que o autor expõe o protagonista Pip, seus pensamentos, vontades, desejos e maldades, assim como os demais personagens que o acompanharão desde a infância.


A personagem Estella, que nos encanta e nos irrita, dado o jogo de sedução que ela faz com o nosso protagonista, notamos que ela é mais instrumento de vingança da Miss Havisham e, vítima portanto, do ódio que alimenta ano após ano. Esta personagem, por sua vez, leva-nos a notar o que acontece quando permitimos tais sentimentos em nossos corações.

Eis algo que achei interessante no enredo: a sensação, depois de certo tempo, de familiaridade com os personagens. Ainda, em muitos momentos não temos conhecimento de certos detalhes, o que aumenta a ansiedade e o medo que tudo desande... como acaba acontecendo por vezes. Eis um alerta ao jovem Pip, do seu amigo Joe, marido de sua irmã, o qual teria sido muito útil se ele lhe tivesse, além de ouvido, compreendido em sua alma:

" 'Há uma coisa que você deve saber com certeza, Pip', disse Joe, depois de refletir durante algum tempo, 'isto é, que mentiras são mentiras, não importa de onde venham, e elas não devem vir; elas começam com uma mentira maior, e depois ficam dando voltas no mesmo lugar. (...)


Gosto do livro, também, por trazer informações pitorescas sobre a Inglaterra de outros tempos, especificamente os arredores de Londres e a respeito desta cidade propriamente dita. É uma viagem no tempo onde, na delícia da leitura, vamos colhendo detalhes  que nos revelam mais sobre a cultura inglesa, as transformações econômicas, o reflexo disso na vida dos menos abastados que ficam a espera de grande esperanças que possam mudar o seu destino, que parece tão determinado desde o seu nascimento.

Recomendo esta leitura para quem está desejoso de conhecer os clássicos, mas tem o "preconceito" de ver neles obras com vocabulário rebuscado e enredos intricados. Não se trata de história rápida, como disse acima, mas garanto que é um enredo que flui, desde que tu, leitor, tenha paciência em te tornar próximo de seus personagens, aceitando-os com seus defeitos. Não se trata de leitura fast food, mas de alimento que se digere aos poucos, apreciando o sabor. O tema da ambição, amor/desejo, amizade, ingratidão, vingança, mágoa, redenção... sentimentos que nos são conhecidos e muitas vezes ignorados, fazem parte da obra.

Leia sem pressa, mas leia. Descubra esta obra e arrisque a conhecer outras. Assim, lendo-as, poderás entender porque continuam a ser apreciadas até hoje.

2 comentários:

  1. Ao mencionar a infância do autor e essa passagem de que "nada é mais delicadamente sentido que a injustiça", me vem à mente outra obra de Dickens que, de repente, me despertou grande interesse: Oliver Twist. Já sabia do que se tratava mas, saber que o escritor viveu aquilo, que conheceu o lado sinistro da Era Vitoriana, que produziu por experiência própria, dá outro valor à história.

    A gente não se sente traído quando lê algo que não é mero jogo estilístico, de retórica, retalhos de clichês engenhosamente costurados pra fabricar um livro vendável... quando o texto vem da vivência do escritor, o livro assume seu verdadeiro papel na experiência humana: o de aproximar as consciências, independentemente de seu lugar e tempo, e acendê-las, avivá-las...

    Gostei muito dessa citação: "No pequeno mundo em que vivem as crianças, não importa quem as crie, nada é mais delicadamente percebido, nada é mais delicadamente sentido que a injustiça."

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    1. De fato, esta citação, que ocorre num trecho inicial da obra, cativou-me por completo. Eu sabia que, depois de ler algo que tinha tocado tanto no meu coração, eu terminaria de ler a obra, ainda que extensa. Na época, não havia pesquisado a vida do autor, pois lera por conta do compromisso de enfrentar as obras clássicas, e por conhecer a história vagamente, pois havia assistido trechos de um filme.

      Quando me propus a fazer a resenha, pesquisando sobre o escritor, logo fiquei curiosa por ler também a obra que mencionaste: Oliver Twist. Quem sabe entre no nosso calendário?

      Grata pelo comentário e pelas contribuições que tem feito pelo Projeto! Abraços.

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