quarta-feira, 2 de julho de 2014

Resenha: "Sidarta" (Hermann Hesse, 1922)

Ed. BestBolso; 144 páginas
"Assim, todos amavam Sidarta. A todos ele causava alegria. Para todos era fonte de prazer. Mas a si mesmo, Sidarta não dava alegria. Para si, não era nenhuma fonte de prazer."

A passagem acima é reveladora de um dos principais temas da obra de Hesse, pelo qual se tornou conhecido como "o autor da crise": a jornada do autoconhecimento através de dilemas existenciais. A esse respeito, sua própria vida proveu farto estofo de vicissitudes.

Quando morreu em 1962, Hesse era um dos autores alemães mais desprezados e esquecidos. Seus críticos diziam que "suas histórias eram uma colagem brega de baixo nível" e Die Zeit, famoso periódico alemão, afirmou que a obra de Hesse "não servia nem para vaso de flores". Nem o fato de ter sido laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 1946, "por  seus escritos inspirados que, ao ganharem em audácia e profundidade, exemplificam os ideais clássicos do humanismo e a alta qualidade do estilo", poupou Hesse, até após sua morte, da animosidade da opinião pública. E essa dificuldade já vinha de muito tempo.

Durante a Primeira Guerra Mundial, Hesse se incomodou com a propaganda de guerra e publicou, em resposta, um artigo em jornal apelando "aos intelectuais alemães por menos polêmicas nacionalistas e mais humanidade". O artigo tomou o título de um poema de Schiller, imortalizado por Beethoven em sua famosa 9ª. Sinfonia, "O Freunde, nicht diese Töner" ("Ó amigos, não estes tons"), que traz em seus versos o reconhecimento da fraternidade universal e a chamada "milhões, abraçai-vos". A retaliação foi com ódio, ridicularização e perseguição. Hesse diria que desde seus "primeiros tímidos protestos contra a sugestão e a violência das massas" tinha sido "exposto a contínuos ataques e enxurradas de cartas abusivas vindas da Alemanha". Em 1924 rejeitou a cidadania alemã, naturalizando-se suíço, e, por essa época, sua obra foi proscrita na Alemanha nazista.

Hermann Hesse, 1927.
Impossibilitado pela doença de comparecer à premiação do Nobel, Hesse escreveu uma carta a ser lida como "Discurso do Banquete" na qual transparece seu multiculturalismo pacifista, que guiou sua conduta e sua produção: 

"Sinto-me familiarizado com a ideia [...] de que a mente é internacional e supra-nacional, que deve servir não à guerra e à aniquilação, mas à paz e à reconciliação. Meu ideal, contudo, não é o desfoque de características nacionais, que leve à uma humanidade intelectualmente uniforme. Pelo contrário! Longa vida à diversidade de todas as formas e cores nesta nossa querida Terra! Quão maravilhosa é a existência de muitas raças, muitos povos, muitas línguas e muitas variedades de atitude e aparências! Se sinto ódio e irreconciliável inimizade ante guerras, conquistas e anexações, sinto-o por diversas razões, mas também porque tantas realizações humanas, organicamente desenvolvidas, altamente individuais e ricamente diferenciadas, têm caído vítimas dessas potências tenebrosas. Odeio os grandes simplificadores e amo o senso de qualidade e de inimitável engenhosidade e singularidade."

Às guerras e à "batalha contra os micróbios da alma no campo da Literatura" juntam-se outros eventos traumáticos de sua vida, a começar pelo ambiente doméstico pietista em que foi criado, cuja educação "visava a subjugar e quebrar a personalidade individual". Chegou a ser enviado para um mosteiro para receber formação religiosa, seguindo a carreira dos pais que haviam sido missionários, mas fugiu e no ano seguinte, 1892, foi internado em uma clínica particular, onde tentou suicídio. Foi então encaminhado para um hospital psiquiátrico, "possuído pelo mal e pela perversidade [Teufelei]", onde seu quadro foi diagnosticado como melancolia. Uma segunda crise de depressão ocorreu por volta da 1ª. Guerra Mundial: uma grave doença contraída por seu filho mais novo, a morte do pai, a crise marital, a doença mental de sua esposa e a própria guerra levaram-no a procurar novamente tratamento psicológico, familiarizando-se então com a Psicologia Analítica de C.G. Jung.

Em 1911, pouco tempo antes da 2ª. crise, Hesse viajou para a "Índia". Seus pais haviam sido missionários lá, tendo sua mãe inclusive vivido muitos anos ali, e seu avô materno fora um eminente especialista em cultura indiana. "Há muitos anos estou convencido de que a inteligência ocidental está em decadência e precisa retornar a suas fontes asiáticas", disse em uma carta datada de 1919. "Durante muitos anos, fui admirador de Buda e me dediquei, já na infância, à literatura indiana." Na carta autobiográfica ao comitê do Prêmio Nobel, também afirmou que "dentre os filósofos ocidentais, fui mais influenciado por Platão, Spinoza, Schopenhauer e Nietzsche [...] mas não me influenciaram tanto quando a filosofia indiana e, depois, a chinesa". A viagem, no entanto, apenas tocou o subcontinente, tendo aportado de fato em ilhas da Indonésia, no Ceilão (atual Sri Lanka) e na Birmânia. A empreita foi decepcionante, mas daria frutos depois no romance "Sidarta" (1922).

Considerado "um dos primeiros escritores alemães a se livrar da influência política", Hesse, de fato, chegou a dizer que "humanitarismo e política sempre são mutuamente exclusivos" e que "não tenho nada a ver com política [...] meu único desejo é encontrar meu caminho para mim mesmo e para atos puramente espirituais". O trauma da infância pietista não o fizeram, contudo, afastar-se do Cristianismo, mas, nessa busca pessoal, caracterizada por uma "recusa de todo e qualquer dogmatismo", busca pela "religião fora, entre e acima das confissões, e que é indestrutível", Hesse "desenvolveu a noção de uma síntese entre as religiões na base de um misticismo universal", que unisse todos os povos e fosse a ponte de ligação entre o Oriente e o Ocidente.

"Sidarta", enfim, foi escrito por um homem de 45 anos, com vasto conhecimento filosófico dos dois hemisférios, auto-analista aparelhado pela psicologia junguiana, com vivência de crises existenciais, paternais e maritais, de tentativa de suicídio, de conflito bélico multinacional, de confronto com patrícios e abandono da própria nacionalidade, etc., e que "produziu sem se interessar em agradar o grande público". Se para a academia sueca "é principalmente como profundo filósofo e pela vigorosa crítica do período contemporâneo em suas histórias que Hesse merece o Prêmio Nobel", para o leitor de hoje, é principalmente por sua mensagem de alma para alma que Hesse merece a sempre renovada visita dos sequiosos leitores desta época de crise emocional e vacuidade de sentido.

"A formosa Kamala", à vista de quem "Sidarta admirou-se de tanta beleza e seu coração deliciou-se", em cena do filme "Siddhartha" (1972): atores inspirados e cenas belíssimas traduzem para a sétima arte a psicologia do famoso romance de Hermann Hesse.

"Que valor tinha toda essa sabedoria para quem ignorava aquilo que era uno e único, o mais importante, ao lado do qual coisa alguma tinha importância?"

"Possivelmente, criaturas como nós não poderão jamais amar. Os outros homens, por tolos que sejam, têm essa faculdade. Nisso reside seu segredo."

"Só, talvez, que procuras demais, que de tanta busca não tens tempo para encontrar coisa alguma."

3 comentários:

  1. Tive o prazer de ler essa obra. Descobrir qual a trejatória que o personagem irá fazer na busca desse sentido, das respostas às suas perguntas inquietantes. Cada parada, pois tinha que voltar à realidade, fazia-me refletir sobre suas percepções e atitudes. Na retomada da leitura, mudanças de pensamentos e novas reflexões. Gostei muito mesmo! Parabéns pela resenha e as belas imagens. Deu vontade de também assistir ao filme!! Espero que esteja a altura do livro. Abraços!

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  2. Muito boa essa análise do livro e da vida do autor.

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