segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Resenha: A morte de Ivan Ilitch (Liev N. Tolstói, 1886)

Ed. Nova Fronteira (2013), 133 páginas
"E viu de forma espantosamente clara que [sua existência] não passava de um imenso e horrendo embuste, que escondia a vida e a morte."

Este livro me foi apresentado não como Literatura mas como Filosofia. Assistia a um vídeo de um curso da The Teaching Company com o sugestivo nome de "The meaning of Life" [O sentido da vida] em meio de cujas 36 lições figurava "Tolstói - Será a vida cotidiana a coisa real?". Foi aí que o professor Jay L. Garfield mencionou "A morte de Ivan Ilitch" e despertou em mim um renovado interesse na obra do escritor russo, havia muito perdido na traumática leitura de "Ana Karenina".

Ao contrário de seu livro mais famoso, "A morte de Ivan Ilitch" é um conto fisicamente curto, de cerca de 70 páginas nesta edição de bolso, mas que porta uma mensagem a ser lida pelo resto da vida. E, aliás, é justo sobre essa releitura, mais da própria existência que do texto impresso, de que trata essa novela de 1886, cujas páginas continuam além da encadernação, dia a dia, em nosso viver desesperadoramente finito.

A história começa com o funeral do juiz Ivan Ilitch e o clima de "com quem vai ficar a vaga" ou "como fica a questão da herança", em que o acontecimento mais perturbador da vida de um homem se transformou num evento que trazia inconveniências mas não adquiria significado. A teatralidade das convenções sociais em torno do óbito são retratadas no primeiro capítulo, com a clara mensagem de que a morte, conquanto a do outro, não altera a ordem das coisas.

Liev Nikolaiévitch Tolstói
(1828 - 1910)
Nos capítulos seguintes acompanhamos a trajetória de Ivan Ilitch, recapitulando momentos decisivos de sua carreira até sua fixação como personagem respeitado, cheio de amigos, numa cidade grande e que, apesar de sua autoridade, não esteve imune à própria mortalidade. Os transes dolorosos de sua enfermidade, a dor mais moral que física, ainda que essa fosse excruciante, são narrados como se fôssemos partícipes do reexame de consciência que o moribundo se vê obrigado a fazer ante o desconsolo das horas que se arrastam lentamente enquanto que, paradoxalmente, seu tempo se esvai rapidamente rumo ao fim.

Ivan Ilitch, varado dum pavor pânico ante seu fim trágico e inesperado, imerge num mundo de reflexões sobre os atos e sentimentos dos que o cercam, sobre os sinais do próprio corpo, sobre seu passado, rememorando as próprias ideias, em busca de um sentido para uma morte estúpida, e, nesse solilóquio que beira a insanidade, enfim descobre a pergunta certa a cobrar da própria honestidade, descobrindo o valor da dor e do sofrimento para o autoconhecimento, e conduzindo-se aos pungentes estertores da morte sorridente e reconciliado com a vida.

Senhores e servos


Esta edição também traz outro conto em que a temática é a morte, ou, antes, essa jornada final de reavaliação de valores. Escrito em 1889, traz a emocionante aventura de um patrão ambicioso e seu servo simplório que se enveredam por uma nevasca inclemente, um, movido pela cobiça, o outro, pela lealdade. A detalhada narrativa torna bem vívida e visual essa epopeia em que o medo da morte, depois de apagados todos os fósforos, acende no espírito humano seu real valor, revelando que aquilo pelo qual importa morrer também importa viver... algo que, mesmo tardiamente, encheria de satisfação os últimos e enregelados momentos de um dos personagens.

"A morte e o quarto de enfermo" (1895), Edvard Munch (1863 - 1944).

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