terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Resenha: Beethoven (Edmund Morris, 2005)

Objetiva (2005), 287 páginas
"Ela evocava um homem tão possuído pela música que trabalhava do amanhecer ao anoitecer, quase sempre esquecendo de comer; sem amigos por escolha própria; inspirado mais pelo ritmo das palavras do que por seu significado; que tinha confiança absoluta no valor duradouro da arte e dizia que a música era 'a mediadora entre a vida da mente e a dos sentidos'." (Impressões de Bettina sobre Beethoven, em carta a Goethe)

Premiado autor de biografias, o queniano Edmund Morris dedicou 50 anos de sua vida a estudar a vida e a obra da "mente mais possante na história da música", Ludwig Van Beethoven (1770 - 1827), cujo nome é sinônimo de genialidade não só no Ocidente mas em todo o mundo. Daí o subtítulo, "O compositor universal", desta breve mas pungente biografia que é "a história de uma vida, e não uma pesquisa sobre a obra de Beethoven". Como o autor diz no prólogo, "a universalidade de Beethoven, [deve-se a] sua habilidade de englobar a ampla gama da emoção humana, desde o terror da morte ao amor à vida - e a metafísica mais além -, reconciliando todas as dúvidas e conflitos em uma catarse de som". Movido pela "grandeza de suas aspirações", o mestre alemão "[sentia] que compunha [...] para a comunidade humana". A "intemporalidade de Beethoven", "sua originalidade [que] o impedia de repetir-se", tornaram-no, dentre os grandes compositores, "o mais duradouro em seu apelo a diletantes e intelectuais".

Edmund Morris
(1940 - presente)
Morris não escreve sobre o grande compositor alemão como um historiador lidando com documentos mortos, vestígios empoeirados, sujeitos a escrutínio investigativo e apresentados em linguagem academicista. Ele começa no seu prólogo justamente por descrever uma experiência pessoal que mostra Beethoven tão vivo hoje como na virada do séc. XVIII ao XIX: em sua arte, expressão concreta de sua mente, de seu coração, vibra hoje tanto como no passado, tanto no Ocidente como no Oriente, sua personalidade bipolar, oscilando entre extremos, "entre o fluxo intenso de idéias e as vicissitudes do intelecto, a hiperatividade e a saúde abalada, uma atitude gregária e a misantropia, a ética e a falsidade, o humor e a depressão, e outros absolutos de caráter e de destino". Beethoven "era, abstraindo-se o chavão, um super-homem com todos os excessos que o supra-humanismo acarreta: vigor, agressividade e talentos exacerbados - e muito pouco tempo para libertar-se de todos [56 anos]". E sentimos isso em sua música pois, como ele mesmo declarou, "só vivo em minhas notas".

Embora curto, o livro cobre todos os principais eventos da dramática vida de Beethoven, desde sua difícil infância, quando "aprendia música com uma brutalidade que o marcou para a vida toda", "em pé em frente ao teclado e chorando", passando pelas guerras napoleônicas, até sua dolorosa morte, de um tipo de cirrose (diferente da causada por alcoolismo). Seu "poderoso gênio" se descortina ao longo do texto, numa narrativa que contextualiza sua obra no âmbito de sua conturbada vida, cheia de traumas em família, nas relações amorosas, de problemas de saúde, incluindo crises depressivas que beiraram o suicídio, e de conflitos com o meio social e artístico de seu tempo, que Beethoven enfrentou com o propósito consciente de impor sua desafiadora criação na História. Desse esforço, aliás, deriva ter-se reconhecido "pela primeira vez na história da música a condição superior do artista na sociedade".

"Escutava, cada vez mais, através de seus óculos,
examinando avidamente questões escritas  e
respondendo-as enquanto o lápis ainda
estava em movimento. Quando, no ensaio, tocavam 
seus trabalhos, ele observava o movimento
dos arcos e dos dedos, e era capaz de dizer
instantaneamente quando um músico havia 
se distanciado do texto impresso"
O livro nos revela o progresso da doença que fez de Beethoven o mais paradoxal dos músicos, aquela que culminou em sua surdez. Desde que "o jovem Beethoven tinha os ouvidos mais apurados da história da música", até sua cabeça se tornar uma caixa a prova de sons, quando "esse demônio [se instalou] em meus ouvidos", e já não podia se comunicar a não ser por caderno de anotação. A famosa carta, nunca enviada, conhecida como "Testamento de Heiligenstadt", é parcialmente transcrita nesta biografia, dando-nos a oportunidade de sentirmos, por empatia, o sofrimento que fez Beethoven emergir de si mesmo e tornar-se o gigante da música - é daí que deixa de ser um talentoso pianista para se tornar gênio: 

"Oh, jovens que pensam ou dizem que sou malévolo, teimoso ou misantropo, que enorme engano cometem a meu respeito. Não conhecem a causa secreta [...] Para mim era impossível dizer às pessoas: 'Fale mais alto, grite, pois sou surdo'. Ah, como poderia [...] admitir uma doença no único sentido que deveria ser o mais perfeito em mim do que nos outros [...] Que humilhação quando alguém junto a mim ouve uma flauta a distância [...] ou um pastor cantando e [...] não escuto coisa alguma [...] um pouco mais do que isso e teria dado fim a minha vida - só a minha arte me deteve. Ah, pareceu-me impossível deixar o mundo até que tivesse dado à luz tudo aquilo que eu sentia que estava dentro de mim".

A má sorte de Beethoven com as mulheres também figura como decisiva na formação de seu caráter. Amores não correspondidos (afinal, ele seria "muito feio e meio maluco"), idealizações românticas, a bestialidade do desejo sensual, a solidão e até mesmo o inesperado e tão ansiado amor correspondido, mas impossível, da Amada Imortal, exercem influência em sua obra - para o bem ou para o mal dela. Um capítulo traz a lume a identidade da enigmática anônima que por quase dois séculos vinha inquietando os biógrafos de Beethoven, dando origem a diversas teorias, uma das quais, discordante da aceita pelo autor, a do filme "Minha Amada Imortal" (Immortal beloved, 1994), memorável pela brilhante interpretação de Gary Oldman no papel do gênio amargurado de paixão: "Meu anjo, meu tudo, meu próprio eu [...] Meus pensamentos se dirigem a você, minha Amada Imortal, ora alegres, ora tristes, esperando saber se o destino nos escutará ou não - poderia apenas viver plenamente com você ou não viver".

Outra fonte de conturbação para o compositor foi a luta judicial pela guarda de seu sobrinho Karl contra a mãe deste, sua cunhada Johanna, que o autor caracteriza como "essa história sórdida", durante a qual os extremos antagonismos de sua personalidade sobressaem, de um lado, com toda a "a possessividade destrutiva" de Beethoven e, por outro lado, na criação de algumas de suas obras mais sublimes, como a "Missa solemnis" e a "Sinfonia n°. 9 em Ré Menor". "Enquanto Beethoven, o compositor, redimia-se com obras de arte perfeitas, o homem Beethoven estava 'profundamente perturbado, até psicótico'". Por essa época questionou-se sua sanidade mental, embora jamais seu amor paternal pela criança (ainda que expresso de forma tão rude). A truculência com que lidou com a mãe do garoto pode ser apreendida das seguintes palavras: "a moralidade deve ser implantada assim que uma criança tem a infelicidade de mamar o leite de tal mãe". Os pungentes desdobramentos dessa batalha, Beethoven (Ludwig) x Beethoven (Johanna), são analisados com clareza pelo autor dessa envolvente biografia.

Ludwig Van Beethoven (1770 - 1827).
"Se a originalidade, fertilidade e alcance de sua
imaginação não o qualificassem como gênio,
então algum outro superlativo, não disponível
em qualquer idioma no momento, deveria
 ser cunhado"
Morris premia os fãs de Beethoven com passagens que não só descrevem sua personalidade, sua aparência física mas também ilustram seu "modus operandi". O autor diz que "contraste e conflito eram as características essenciais da arte de Beethoven", daí que, mesmo que para Beethoven a arte seja a "fusão perfeita de inspiração e trabalho sistemático", também "a loucura era parte do [seu] estilo". "Quando trabalhava com tamanha intensidade, ele mal era capaz de funcionar como um ser humano comum". "Não podemos nem mesmo ter certeza se possuía controle consciente sobre si mesmo. Ele era, afinal, um artista, impulsionado de modo subconsciente grande parte do tempo".

A obsessão pela perfeição era característica de seu ofício: miríades de anotações de ideias musicais, arcabouços estruturais, harmônicos, fragmentos de melodias, arranjos e soluções alternativas... em centenas de cadernos, e, na ausência deles, até encravadas em móveis e em cascas de árvores. Andava com cadernos nos bolsos, as mãos manchadas de tintas, num mundo sonoro próprio,  às vezes num estado de quase transe, gesticulando sozinho e, não exatamente cantando, mas grunhindo o que seriam temas de suas obras-primas. "A sonoridade de sua música tornava-se cada vez mais rica à medida que se adaptava à vida 'do outro lado do silêncio'", adaptação que conquistou à custa de 18h de trabalho por dia, cujo inefável legado estão até hoje entre as mais altas expressões da inventividade humana. Seus últimos quartetos de cordas, por exemplo, são simplesmente "o ápice da música instrumental do Ocidente".

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O livro possui como apêndice um pequeno glossário que auxilia os neófitos a compreenderem certas passagens do texto, termos como "cadenza", "contraponto", "fuga", "Kapellmeister", "número do opus", "rondó" e "trinado".

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Hoje, 16 de dezembro, aniversário deste grande herói do gênero humano, fica o convite para visitá-lo, na casa do ser, em sua alma, apreciando o que melhor que qualquer biografia (mesmo uma excelente como a de Edmund Morris) pode revelar sobre o homem que epitomiza a genialidade redentora da Humanidade: sua arte!

O piano:
"Sonata quasi una fantasia" (mais conhecida como "Mondscheinsonate", "Sonata ao Luar"), op. 27, n°.2 (1801), em Dó sustenido menor, 3°. movimento, "Presto agitato": https://www.youtube.com/watch?v=zucBfXpCA6s

A orquestra:
Sinfonia n°. 7, em Lá Maior, op. 92 (1811/1812), 4°. movimento, "Allegro con brio": https://www.youtube.com/watch?v=3JS2Plbu1V4

"[Depois do café,] partia a passos pesados para o campo com seu caderno de notas, gritando e gesticulando. As pessoas locais que desconheciam quem ele era olhavam para suas roupas surradas e tornozelos inchados e o tomavam como um Trotel (imbecil)". As famosas caminhadas de Beethoven - parte de seu processo criativo, haurido numa Natureza, para ele cada vez mais muda, na qual imergia como numa experiência espiritual panteísta.

2 comentários:

  1. Nossa, amei a resenha. Fiquei muito curiosa para ler o livro.

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  2. Olá, Quezia! Obrigado por registrar sua impressão aqui! Mas, enquanto não toma o livro em mãos pra conhecer o Beethoven histórico, que tal conhecer o Beethoven vivo em suas notas? Se já aprecia a obra do mestra alemão, sinta-se a vontade pra compartilhar conosco o impacto que a música dele teve em sua vida - porque ninguém que tenha ouvido Beethoven com a mente e o coração sai intocado dessa experiência! Abraço!

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